No primeiro texto desta série sobre liderança no futebol, sugerimos uma resposta para a pergunta “o que é liderança?”, vimos quais os níveis de abstração em que o fenômeno de liderança acontece, e que se trata de um fenômeno complexo ou uma função multivariável, ou seja, é influenciado por múltiplos fatores, notadamente os líderes, os liderados e as situações. Também procuramos defender a importância de estudar liderança para ser, selecionar e formar melhores líderes, ainda que esse fenômeno seja, ao mesmo tempo, ciência e arte, e que, portanto, apenas o estudo não seja suficiente nem imprescindível para o exercício efetivo da liderança.
Neste texto, o objetivo é dar mais sentido prático ao estudo da liderança, a partir da apresentação dos comportamentos de liderança, tendo como paradigma as teorias comportamentais de liderança. Ao fim deste texto, espera-se que o leitor tenha condição de identificar os principais conjuntos e subconjuntos de comportamentos de liderança.
As teorias comportamentais de liderança formam o primeiro grande corpo estruturado de estudos da liderança. Surgem a partir da metade do século XX em oposição às teorias que procuravam explicar o fenômeno da liderança exclusivamente a partir de traços de personalidade ou mesmo físicos dos líderes. Uma meta-análise dos estudos sobre liderança existentes naquele momento, conduzida por Stogdill[1], concluiu que esses estudos falhavam em identificar padrões de personalidade ou traços físicos que fossem capazes de, isoladamente, indicar potencial de liderança.
A partir daquele momento, houve uma transição do foco nas personalidades para o foco nos comportamentos, ou, em outras palavras, o foco deixou de ser em quem o líder é para no que o líder faz[2]. Pesquisadores da Universidade de Ohio State, liderados por Stogdill, e da Universidade de Michigan conduziram uma série de estudos independentes sobre comportamentos de liderança, e chegaram a conclusões muito similares. A principal dessas conclusões é que era possível identificar duas grandes categorias de comportamentos de liderança[3], que serviam para classificar esses comportamentos e facilitar o seu estudo. Havia distinções na nomenclatura entre um grupo e o outro, mas os dois estavam se referindo essencialmente à mesma coisa: essas categorias, em ambos os casos, dividiam os comportamentos entre orientados a tarefas ou orientados a relacionamentos.
A principal distinção entre as conclusões de uma corrente e da outra era que, enquanto para os pesquisadores da Universidade de Michigan a relação entre essas duas categorias era linear ou unidimensional, ou seja, ou o líder tinha comportamentos orientados a tarefas ou tinha comportamentos orientados a relacionamentos, para o grupo da Universidade de Ohio State essa relação era matricial ou bidimensional, ou seja, o líder poderia, ao mesmo tempo, ter comportamentos orientados a tarefas e a relacionamentos. Em breve essa distinção ficará mais clara.
A corrente da Universidade de Ohio State prevaleceu, e foi aperfeiçoada por outros dois pesquisadores independentes, Robert R. Blake e Jane S. Mouton, que desenvolveram nos anos 1960 a Grade Gerencial, atualmente conhecida como Grade de Liderança. A partir da aplicação de um questionário aos liderados, é atribuída uma “nota” ao líder referente ao seu domínio dos comportamentos de liderança orientados a tarefas e a resultados; com base nessa nota, a Grade de Liderança permite representar graficamente o desempenho do líder e, consequentemente, indicar as suas qualidades e pontos de melhoria:

Ao inserir em um eixo a avaliação dos comportamentos de liderança orientados a tarefas (ou resultados, como descrito na imagem acima) e no outro eixo os orientados a relacionamentos (ou pessoas, como descrito na imagem), a Grade de Liderança permitiu que os tomadores de decisão e o próprio líder identificassem com mais clareza quais comportamentos devem se preocupar em manter e quais devem se preocupar em modificar ou desenvolver. Também é possível usar determinados estereótipos, como os descritos na imagem, para classificar e qualificar o líder de acordo com a sua pontuação no questionário.
Posteriormente, a partir dos anos 1990, emergiu uma nova categoria de comportamentos, chamada de comportamentos orientados à mudança[4]. Os comportamentos enquadrados nessa categoria seriam distintos das outras duas, e incluiriam comportamentos do líder como criar visões, aceitar novas ideias, tomar decisões rápidas, incentivar a cooperação, não ser excessivamente cauteloso, e não focar excessivamente no que foi planejado[5]. A partir desse momento, a abordagem dos comportamentos de liderança passou a ser tridimensional[6], considerando os comportamentos orientados a tarefas, relacionamentos e mudanças.
Cada categoria tem um propósito primário diferente, e todas elas são relevantes para uma liderança eficaz[7].
O comportamento orientado a tarefas tem o propósito primário de cumprir a tarefa de forma eficiente e confiável. O comportamento orientado a relacionamentos tem o propósito primário de aumentar a confiança mútua, a cooperação, a satisfação com o trabalho e a identificação com a organização. Já o comportamento orientado a mudanças tem o propósito primário de compreender o ambiente, encontrar formas inovadoras de se adaptar a ele, e implementar grandes mudanças nas estratégias, produtos ou processos[8].
CATEGORIAS DE COMPORTAMENTOS NA PRÁTICA
Falar em comportamentos orientados para relacionamentos, tarefas e mudança ainda pode soar muito abstrato. Afinal de contas, que comportamentos seriam esses?
Com a clareza trazida por essa primeira classificação, os pesquisadores puderam desenvolver uma subclassificação, que divide esses três grandes grupos de comportamentos em subgrupos, permitindo dar maior concretude e aplicação prática ao conhecimento. São esses grupos que serão apresentados a partir de agora.
COMPORTAMENTOS ORIENTADOS A TAREFAS
Os comportamentos orientados a tarefas podem ser classificados em três subgrupos: i) planejamento de atividades, ii) definição de atividades e expectativas e iii) monitoramento de desempenho.
Os comportamentos de planejamento de atividades são fundamentais para uma execução eficaz das tarefas. O papel do líder nesses casos é ter um olhar estratégico e planejar da melhor forma possível as tarefas que serão distribuídas entre os liderados. A palavra-chave aqui é organização. Ao contrário do que o senso comum pode indicar, as tarefas de planejamento não se limitam ao início do trabalho, e devem ser executadas durante todo o projeto. Num clube de futebol, existem alguns momentos em que o planejamento de atividades ganha mais protagonismo, como na intertemporada e no período entre competições, mas o dia a dia de um clube deve ser permeado por atividades de planejamento, seja no nível estratégico, como a geração de novas receitas ou a melhoria da qualidade do elenco, seja no nível operacional, como o planejamento de partidas e viagens.
Feito o planejamento, é necessário passar à etapa de definição de atividades e expectativas. A palavra-chave aqui é clareza. Nesses casos, o líder precisa comunicar de forma clara e objetiva quais serão as atividades desenvolvidas por cada um dos liderados e qual é o desempenho esperado em cada uma dessas atividades. Nessa fase surgem e são comunicados os indicadores de desempenho, que serão responsáveis por informar e permitir o monitoramento do desempenho. Exemplos de comportamentos como este num clube de futebol: meta de pontos/colocação numa competição, metas de número de jogadores da base utilizados, definição e comunicação das funções que os atletas devem desempenhar durante um determinado jogo.
O último subgrupo de comportamentos orientados a tarefas é o monitoramento de desempenho. Aqui, a palavra-chave é informação. Esses comportamentos têm como característica a coleta de informações, a sua avaliação de forma quantitativa e qualitativa, e os ciclos de feedback e ajuda com os liderados. É uma etapa mais “mão na massa”, pois o líder tem a oportunidade de alinhar e melhorar o desempenho dos seus liderados de acordo com os objetivos da equipe. No futebol, em especial nas atividades relacionadas diretamente com o jogo, ganhou destaque nos últimos anos a análise de desempenho, cujo objetivo é precisamente coletar e classificar dados e informações quantitativas e qualitativas sobre o desempenho técnico, tático e físico dos jogadores durante os jogos e treinos; os relatórios de análise, por sua vez, são utilizados para orientar as sessões de treinamento e as instruções do treinador antes e durante os jogos.
COMPORTAMENTOS ORIENTADOS A RELACIONAMENTOS
Os comportamentos orientados a relacionamentos ganharam muita importância nas últimas décadas, e dentro da indústria esportiva (mais especificamente do futebol) conversam diretamente com aquela que é considerada a dimensão menos dominada – e por isso com maior potencial de crescimento – do desempenho esportivo: a psicológica ou emocional. A precariedade dos comportamentos orientados a relacionamentos no ambiente do futebol é notória, e isso ficará claro para o leitor conforme os subgrupos forem apresentados.
Assim como no conjunto de comportamentos orientados a tarefas, os comportamentos orientados a relacionamentos também podem ser classificados em três subgrupos: i) suporte emocional, ii) mentoria/coaching e iii) reconhecimento.
Os comportamentos de suporte emocional são aqueles por meio dos quais o líder e o liderado estabelecem conexão[9]. São comportamentos como a atenção, a consideração e a aceitação, cujo objetivo, além de gerar lealdade e camaradagem entre líder e liderado, é criar um ambiente de segurança dentro do grupo ou organização. Esse ambiente de segurança é fundamental para aumentar a tolerância a riscos, despertando a criatividade e inventividade; num momento em que se acusam os líderes (em especial os treinadores) de produzir um futebol robotizado e automatizado, criar esse ambiente de segurança por meio do suporte emocional pode ser um diferencial competitivo relevante. Pela própria incompreensão ou pela falta de palavras para exprimir os comportamentos dessa categoria, vê-se a dificuldade dos atores (em especial jogadores) de exprimir o que querem dizer com expressões como “grupo fechado”, “família”, dentre outras que são usadas para descrever elencos de futebol nos quais há alta ocorrência do suporte emocional.
Os comportamentos de mentoria/coaching são aqueles pelos quais o líder assume a responsabilidade de, muitas vezes de forma individualizada, transmitir ao liderado conhecimentos ou práticas que possam melhorar o seu desempenho. Esses comportamentos têm a capacidade de gerar a fidelidade entre líder e liderados, pois criam uma conexão que muitas vezes transcende o ambiente de trabalho[10]. No futebol, é muito comum se evocar a figura do “treinador-paizão”, aquele treinador que tem a habilidade para exercer a função de mentor com os jogadores e ajudá-los a superar dificuldades temporárias ou crônicas, no futebol ou em outros aspectos da vida. Cabe um aprofundamento da análise, e não é o objetivo deste texto, mas uma hipótese que pode explicar por que tantos ex-atletas têm sucesso na função de treinador mesmo sem instrução formal é a sua capacidade de exercer esse papel de mentores dos atletas.
Por fim, os comportamentos de reconhecimento parecem, dentre os orientados a relacionamentos, os mais incorporados à cultura esportiva e ao futebol em especial. O esporte naturalmente invoca alguns desses comportamentos, como as cerimônias formais de reconhecimento e agradecimento, as premiações, e mesmo os elogios diretos. Entretanto, é preciso haver um cuidado muito grande por parte do líder com o modo como esses comportamentos de reconhecimento são conduzidos, para evitar tanto a sua falta como o seu excesso, assim como evitar que, no processo de reconhecimento, sejam criados comportamentos tóxicos dentro do grupo e da organização. O reconhecimento deve ser, acima de tudo, justo, e alinhado com os objetivos coletivos.
Um ponto extremamente importante sobre os comportamentos orientados a relacionamentos é que não só os líderes podem ser treinados para exercê-los como as pesquisas experimentais indicam que a melhoria nesses comportamentos implicou um aumento na satisfação dos subordinados e na produtividade[11]. Aparentemente, os clubes de futebol deveriam considerar a oferta de treinamentos aos seus líderes especialmente direcionados a aumentar a sua capacidade de adotar comportamentos dessa categoria.
COMPORTAMENTOS ORIENTADOS A MUDANÇAS
Último grande conjunto de comportamentos a ser identificado pelas pesquisas, os comportamentos orientados a mudanças ainda não apresentam uma taxonomia tão desenvolvida quanto a dos dois primeiros grupos. Isso significa que ainda não foram categorizados em subgrupos.
Uma tentativa de organizar esses comportamentos é a seguinte: comportamentos de observação do ambiente, como a detecção de ameaças e oportunidades, o estudo da concorrência, e a interpretação de novos eventos que possam demandar a mudança; comportamentos de criatividade e inovação, por meio dos quais o líder estimula os liderados a “pensar fora da caixa” e tentar novas soluções para os problemas que se apresentam; e comportamentos de celebração da mudança, por meio dos quais o líder procura reforçar o aspecto positivo da implementação de mudanças.
EFEITOS MULTIPLICATIVOS E DIFERENÇAS ENTRE INCIDENTES NEGATIVOS E POSITIVOS
Uma característica importante dos comportamentos de liderança é que eles não têm um efeito aditivo, e sim multiplicativo. Isso significa que combinar comportamentos de diferentes categorias multiplica a efetividade da liderança. Um exemplo: quando um treinador oferece suporte emocional (relacionamentos) ao apresentar o relatório de análise de desempenho (tarefas) de um jogador, e ao mesmo tempo estimula que o jogador seja mais criativo em campo (mudanças), a efetividade da sua liderança é muito superior à que se esperaria caso ele apresentasse cada um desses comportamentos separadamente.
Isso reforça o caráter multidimensional da liderança: o líder efetivo é aquele capaz de combinar diferentes comportamentos de liderança. Além disso, evidencia que pode ser mais importante o local e a forma do comportamento de liderança do que o comportamento em si[12].
Por fim, o líder também precisa estar atento ao fato de que um comportamento negativo tem mais influência do que um comportamento positivo[13]. Portanto, antes de tentar ser um “bom líder”, talvez seja mais efetivo focar em abandonar os comportamentos do “mau líder”.
PRÓXIMO PASSO: LIDERANÇA TRANSFORMACIONAL
Neste texto, pudemos aprender sobre os comportamentos de liderança, a começar pela apresentação do paradigma dominante no estudo da liderança, o das teorias comportamentais de liderança. Na sequência, apresentamos os três conjuntos de comportamentos identificados nos fenômenos de liderança: os comportamentos de liderança orientados a tarefas, a relacionamentos e a mudanças. Por fim, foram apresentados os subconjuntos de comportamentos de liderança, mais concretamente visualizáveis na análise dos fenômenos de liderança.
Apesar de ainda ser o paradigma dominante, as teorias comportamentais abordadas neste texto se mostraram limitadas para explicar o fenômeno da liderança. Isso porque oferecem uma abordagem transacional da liderança, em que os comportamentos dos líderes têm como foco obter algo em troca dos liderados. Essa abordagem se tornou insuficiente para compreender a liderança contemporânea, em especial com a identificação dos comportamentos de liderança orientados a mudança.
Diante disso, nos últimos anos emergiu um novo paradigma de abordagem do fenômeno de liderança, chamado de liderança transformacional. Ao contrário da liderança transacional, a liderança transformacional enfoca a criação de uma conexão entre líder e liderados que aumenta os níveis de motivação e moralidade de ambos[14]. É sobre esse novo paradigma da liderança que falaremos no próximo texto. Até lá!
[1] STOGDILL, Ralph M. Personal Factors Associated with Leadership: A Survey of the Literature, The Journal of Psychology, 25:1, 35-71, 1948.
[2] NORTHOUSE, Peter G. Leadership: Theory and Practice, 7th ed. Sage Publications: 2015, p. 71.
[3] Id., ibid.
[4] Por todos, ver: EKVALL, G., & ARVONEN, J. (1991). Change-centered leadership: An extension of the two-dimensional model. Scandinavian Journal of Management, 7(1), 17–26.
[5] YUKL, Gary. Leadership in Organizations. Prentice Hall: 2012, p. 68.
[6] Id. Ibid.
[7] Id., p. 69.
[8] Id. Ibid.
[9] Id., p. 76.
[10] Id., p. 77.
[11] Id., p. 62.
[12] Id., p. 65.
[13] Id. Ibid.
[14] Id., p. 162.