E se nada der certo?


Ontem ouvi o episódio do “Bom dia, Internet!”, podcast do meu amigo Pedro Lobato com o tema “e se nada der certo?”. O motivo do tema foi um evento temático ocorrido numa escola do interior do Rio Grande do Sul dia desses, em que alunos do último ano do ensino médio deveriam ir “fantasiados” como um profissional de alguma área em que poderiam trabalhar caso não fossem aprovados no vestibular. Os alunos foram vestidos de vendedor ambulante, atendente do McDonalds, gari, pedreiro, e outras profissões de baixa qualificação e remuneração.

Obviamente, com a notícia, choveram críticas à iniciativa da escola, em especial porque aparentemente havia ali uma grande manifestação de preconceito e desdém com essas profissões. A iniciativa foi criticada pela maioria dos meios de comunicação (e pelas pessoas que interagiram com a notícia, no já famoso “tribunal das redes sociais”).

Foi nesse contexto que eu ouvi o podcast, que o Pedro apresenta com mais um amigo e que contou com a participação de um convidado, todos na faixa dos 20 e poucos anos. O Pedro é advogado, trabalha na área, mas não esconde de ninguém que não gosta da profissão; o negócio dele é produção de conteúdo, e aí entra a rede de podcasts que ele está desenvolvendo, a Arquivos Secretos Radio Station (www.asradiostation.com.br). O Guilherme, que apresenta o programa com ele, é publicitário e trabalha na área, mas também desenvolve outras atividades paralelas. E o convidado, Lucas, é engenheiro civil de formação, mas praticamente nunca trabalhou na área (ele inclusive relata a história da única obra que ele “tocou”), e hoje é youtuber, DJ e bartender numa casa noturna. Cada um compartilhou a sua história, as suas ambições quando mais jovem, e a aparente insatisfação com o atual estágio de vida em que estão; resumindo, soltaram um unânime “acho que minha vida não tá dando certo”.

Eu (quem me conhece sabe) também sou um advogado que trabalha na área mas não tem o menor interesse em seguir na profissão, e também poderia dizer que, no momento, minha vida “não tá dando certo”. Eu não vejo dessa forma, e entendo que isso é só uma fase de recuperação e aprendizado, mas é fato que as coisas não aconteceram da forma como eu desejava nos últimos anos.

Isso tudo me colocou pra refletir sobre algumas coisas:

1) O QUE A ESCOLA FEZ É EXTREMAMENTE IMPORTANTE, E DEVERIA SER OBRIGATÓRIO EM TODAS AS ESCOLAS

O Tim Ferriss (escritor, empreendedor, investidor e apresentador do qual eu sou fã) chama isso de fear setting (em tradução livre: configuração do medo). Basicamente, é traçar o pior cenário possível, ou seja, tentar imaginar exatamente o tal do “e se nada der certo?”. Isso é importantíssimo! Em geral, vejo que as pessoas só pensam em traçar os seus sonhos, o cenário ideal, como vai ser a vida se tudo der certo; ninguém traça os seus pesadelos, o que vai acontecer se tudo der errado.

Sun Tzu, em “A Arte da Guerra”, disse: “Conheces teu inimigo e conhece-te a ti mesmo; se tiveres cem combates a travar, cem vezes serás vitorioso. Se ignoras teu inimigo e conheces a ti mesmo, tuas chances de perder e de ganhar serão idênticas. Se ignoras ao mesmo tempo teu inimigo e a ti mesmo, só contarás teus combates por tuas derrotas”. Quem nunca parou pra pensar no que fazer quando as coisas derem errado (e, em maior ou menor medida, elas sempre dão em algum momento) é pego desprevenido, corre o risco de se desesperar e de entrar numa espiral negativa.

Pra citar mais um filósofo, “todo mundo tem um plano até levar o primeiro soco na cara” (Mike Tyson).

Deixo aqui o link pra apresentação do Tim Ferriss no TED, explicando direitinho o fear setting: https://www.ted.com/…/tim_ferriss_why_you_should_define…

2) PASSAR NO VESTIBULAR, FAZER UMA FACULDADE, CONSEGUIR UM EMPREGO… NADA DISSO É “DAR CERTO”!

A nossa comunicação, o nosso acesso à informação, os nossos meios de transporte, a nossa expectativa de vida… tudo isso mudou radicalmente nos últimos 200 anos. Nosso ensino, por outro lado, continua praticamente igual! Esse modelo em que uma criança é posta por 15 anos sentada em uma sala de aula, como se o seu cérebro fosse um balde vazio a ser preenchido pelo conhecimento do professor, pra quando tiver 20 e poucos anos ser jogada ao mundo com um diploma e um “se vira!” obviamente não funciona! Não é à toa que o número de pessoas com diversos distúrbios mentais (como TDAH e depressão, dentre outros) vem crescendo exponencialmente nos últimos anos. Pior do que isso: habilidades fundamentais, como criatividade, comunicação, associação de conhecimentos, identificação de padrões, e mesmo o pensamento analítico não estão sendo desenvolvidas! É isso que leva um dos alunos a se “fantasiar” de vendedor: ele simplesmente não sabe que a habilidade de venda é uma das mais importantes e valorizadas no mercado de trabalho, e que os grandes gênios da nossa era foram ou são todos, acima de tudo, excelentes vendedores (pense no Steve Jobs).

Além disso, existem DIVERSAS profissões que simplesmente não precisam de uma faculdade pra serem exercidas. Mas (talvez exatamente por isso) nós nunca ouvimos falar delas na escola, e simplesmente não nos foi dada essa opção. Além disso, um “teste vocacional” nunca vai indicar que uma pessoa deve ser tatuador, humorista, ator, vendedor, piloto, empreendedor, atleta… Repare: são algumas das profissões com a possibilidade de melhores remunerações! Com sorte, a pessoa que é vocacionada acaba “tropeçando” nessas atividades ao longo da vida, e consegue encontrar o senso de satisfação profissional que a esmagadora maioria das pessoas com formação superior não consegue.

3) CADA VEZ MAIS O “ESPECIALISTA” ESTÁ PERDENDO ESPAÇO

Quem desenvolve uma e só uma habilidade está cada vez mais fadado ao fracasso e à insatisfação profissional. Se uma pessoa só sabe realizar uma atividade, ela tem dois concorrentes muito mais competentes do que ela: um robô e quem sabe realizar duas ou mais atividades. Muito mais importante é desenvolver algumas habilidades genéricas (também chamadas “meta-habilidades”), como aquelas mencionadas no tópico anterior, que podem ser aplicadas em várias atividades. Diante disso, o ensino superior no Brasil é uma máquina de produzir fracassos e frustrações: coloque adolescentes pra escolher se especializar em uma atividade, seguindo um currículo extremamente rígido e com quase nenhuma possibilidade de mudar de rumo, e você vai ter “vintões”, “trintões” e “quarentões” frustrados, infelizes e improdutivos.

Quem ganha é a indústria farmacêutica, que é presenteada com milhões de clientes para os seus remédios contra ansiedade, depressão, distúrbios do sono etc.

4) O QUE A ESCOLA FEZ É IMPORTANTÍSSIMO. O PROBLEMA É COMO A ESCOLA FEZ…

A ideia de associar não passar no vestibular com fracasso, e, pior ainda, associar o fracasso com determinadas profissões vitais pro funcionamento da sociedade, cria naquela comunidade de alunos um inevitável sentimento de superioridade em relação a quem exerce essas profissões. Pior: cria nesses adolescentes o sentimento de que eles têm direito a determinados privilégios, prerrogativas ou tratamento especial que aquelas outras pessoas não têm (o que os americanos chamam de “sense of entitlement”). Ou seja, como eu tenho um diploma superior, eu devo me sentir no direito de ter mais coisas, experiências e satisfação pessoal e profissional do que aqueles “cidadãos de segunda classe”.

Como uma vez eu ouvi na minha faculdade, “não dá pra comparar uma Coca-Cola com um mendigo, a Coca vale bem mais”; ou, como eu ouvi meses atrás, “eu gosto mais de cachorros do que de humanos”. Ambas as frases ditas por pessoas com formação superior em uma universidade pública (ou seja, que passaram no vestibular e “deram certo”). Uma sociedade em que coisas são mais importantes do que pessoas está fadada a ser pra sempre pobre…

tl;dr:

A ideia do evento “se nada der certo” não tem nada de errado; pelo contrário, deveria ser obrigatória em todas as escolas. Mas, em vez de ser usada pra aterrorizar vestibulandos com a possibilidade de não passar no vestibular, deveria ser uma oportunidade para que esses adolescentes, no fim da sua formação escolar, refletissem não só sobre o que querem da vida, mas também sobre o que não querem, e também pra reconhecer o valor de profissões que não demandam formação superior. A formação escolar de hoje não prepara ninguém “pra vida”, e ninguém precisa de faculdade pra se realizar profissionalmente; pelo contrário, essa “hiperespecialização” do ensino superior pode ser bem mais prejudicial do que benéfica.


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