Fim da “dança das cadeiras”​ no futebol brasileiro: será que é só parar a música?


A CBF propôs e os clubes decidiram: em 2021, tanto a Série A quanto a Série B terão limitações no número de trocas de treinador. Em resumo, durante o Campeonato Brasileiro, cada clube só vai poder demitir um treinador, e cada treinador poderá pedir demissão somente uma vez.

A decisão foi comemorada por alguns, criticada por outros, mas debatida por praticamente todos aqueles que trabalham no futebol ou o estudam. O fato de ter sido aprovada pela margem mínima entre os clubes da Série A (11 a 9) também deixou claro que o assunto passa longe de ser consenso entre os próprios clubes. Nem mesmo entre os treinadores a medida foi unanimidade: se o presidente da Federação de Treinadores comemorou, Vanderlei Luxemburgo fez críticas, questionando inclusive a legalidade da medida.

Ok, vamos deixar de lado a análise jurídica, assim como a análise econômica (que nos indica que a restrição cria uma barreira à entrada e causará um aumento nos salários pedidos pelos treinadores). O foco deste texto é sobre os possíveis impactos estratégicos da medida.

Em gestão, fala-se muito sobre a aplicação dos “3 E’s”: Eficiência, Eficácia e Efetividade. Sendo bem simplista, eficiência é “fazer mais com menos”, eficácia é atingir o fim desejado, e efetividade é quando o atingir o fim desejado traz benefícios desejados.

A primeira pergunta é: a medida aprovada é (ou pode ser) efetiva? O objetivo da medida é reduzir a rotatividade de treinadores. Mas por que queremos isso? Suponho que seja pela premissa de que, com menor rotatividade, a estratégia esportiva do clube tem mais chances de ser atingida. Mas essa premissa é verdadeira? E quando a estratégia esportiva do clube não depende da continuidade do treinador para ter sucesso?

Parece absurdo? Pois trago dois exemplos bem claros: Athletico Paranaense e Flamengo, os dois clubes que mais trocaram de treinador na “era dos pontos corridos”, obtiveram nos últimos anos sucesso na estratégia esportiva com alta rotatividade de treinadores. O Flamengo foi campeão brasileiro trocando o treinador a poucos meses do fim do campeonato. Já o Athletico é reconhecido por ter desenvolvido o “Jogo-CAP”, um projeto de futebol que precede o projeto técnico e, assim, reduz a relevância estratégica do treinador para a sua execução; não à toa, o CAP passou a “formar” treinadores em suas equipes secundárias, os quais frequentemente são promovidos ao time principal, evitando a contratação de um treinador externo. Mais um exemplo: o Palmeiras, campeão da Libertadores e da Copa do Brasil, também trocou de treinador durante a temporada (curiosamente, o clube votou a favor da nova regra).

Um argumento relevante a favor da medida pode ser o de que somente os 4 clubes rebaixados da Série A em 2020 não teriam cumprido a nova regra, ou seja, aqueles que tiveram o pior resultado desportivo foram exatamente aqueles que “trocaram demais”. Outro argumento relevante se traduz no deprimente exemplo do Santos: de acordo com seu presidente, o clube está atualmente remunerando 7 ex- treinadores (além do atual, Ariel Holan), com os quais tem uma dívida de R$ 15 milhões.

Mas é importante ter em mente que o fato de dois eventos acontecerem ao mesmo tempo não significa que um causou o outro. Talvez (e parece mais provável) tanto a troca de treinadores quanto os rebaixamentos tenham sido, ambos, causados por outros erros de planejamento e gestão, ou mesmo por problemas crônicos (como o alto endividamento, as disputas políticas internas ou a ausência de um planejamento de longo prazo).

O caso do Santos é ainda mais curioso: mesmo contando com praticamente todos os elementos desse “pacote”, o clube quase conquistou a Libertadores.

Próxima pergunta: menor rotatividade realmente é melhor pro clube em qualquer hipótese? Será que a alta rotatividade não pode ser muito mais um sintoma de problemas do que a causa?

Outros fatos a levar em consideração:

  1. a proposta não veio dos clubes, e sim do Presidente da CBF Rogério Caboclo;
  2. não é a primeira vez que a proposta é feita, tendo sido rejeitada em outras oportunidades;
  3. como já dito, a decisão foi por margem mínima (11×9).

A aprovação pelos clubes da Série B foi mais “folgada” (18×2), mas, por ter sido votada um dia após a aprovação na Série A, pode ter sido muito mais um “efeito boiada” do que uma decisão seriamente ponderada e tomada em um nível estratégico.

Também é sintomático o depoimento do presidente do EC Bahia, Guilherme Bellintani, em seu perfil no Twitter:

Por que o Bahia votou contra a proposta que limita dois treinadores no Brasileirão?

1. O Fair Play Financeiro do futebol brasileiro, projeto muito importante elaborado ao longo de anos, deveria começar a ser implantado no país em 2021, com punições progressivas aos clubes que gastam mais do que podem. Isso foi aprovado e bastante divulgado.

2. Na reunião do Conselho Arbitral de 2020, o Bahia já havia lamentado a lentidão prevista para aplicação das penas no projeto brasileiro. Ainda assim, tínhamos esperança que em 2021 fossem iniciadas as punições aos clubes que colocam em campo times que não podem bancar.

3. Para nossa surpresa, o assunto foi ‘esquecido’ em 2021. As penas previstas, que já eram brandas, simplesmente foram desconsideradas e a implantação real do projeto seguirá indefinida. ‘Podem contratar e não pagar’, é a mensagem perpetuada por mais uma temporada.

4. Para tentar dar um ar de modernidade ao Campeonato deste ano, à margem da real transformação que seria o Fair Play Financeiro, propõe-se uma medida aparentemente bonitinha, mas pouco transformadora: a limitação de contratação de treinadores.

5. Ora, se não haverá punição aos clubes que gastam mais do que arrecadam, se todo mundo pode continuar dando calote, se insistiremos em adiar mudanças realmente estruturantes, não venham controlar quantos treinadores eu devo ou não devo contratar em um campeonato.

6. O intervencionismo só faz sentido se for sistêmico. Sendo pontual, para dar falsa impressão de modernidade, com o respeito que tenho a todos, não contarão com meu carimbo. A velha máxima de ‘vamos mudar alguma coisa para permanecer tudo como está’ não terá o meu apoio.”

Impossível ignorar essa declaração. Ainda mais vinda de quem vem: o Bahia passou, na última década, por um dos processos de “turnaround” mais espetaculares do futebol brasileiro. De um clube em estado falimentar, cuja gestão passou a ser feita por um interventor nomeado pela Justiça em 2013, o clube implementou um choque de gestão, se profissionalizou, saneou suas finanças e não só se tornou presença garantida na Série A como passou a ter uma capacidade de investimento superior a clubes com receitas muito maiores. Agora, com as finanças saneadas, depois de tomar com diligência todas as doses de um remédio muito amargo e com alguns efeitos colaterais, o clube gostaria de ver todos aqueles que padecem da mesma doença fazerem o mesmo tratamento.

Esse é o grande problema das regras “vindas de fora”, ainda mais numa discussão tão apertada (11×9). Elas atacam sintomas, não a doença, e têm potencial para causar mais mal do que bem. É como um remédio para tosse: ele trata da mesma forma um sintoma de algo que pode ser uma doença grave, mas pode também não ser nada.

Tudo que envolveu a medida também é sintoma de uma outra doença, talvez a mais grave a afligir o futebol brasileiro: a falta de um pensamento sistêmico e de uma mentalidade estratégica. O final da fala de Bellintani é claro nesse sentido. A falta desses dois ingredientes faz com que a complexidade do futebol seja ignorada, e as decisões sejam tomadas com base em “receitas” ou modas: ora é o treinador estrangeiro, ora é o “manager”; se o jogo da moda é o de posição, não importa muito se o elenco e a tradição do clube são mais compatíveis com outro estilo; se está na moda ter executivo de futebol, contrata-se alguém para o cargo (nem que seja somente para acatar e executar as ordens do vice de futebol).

Em outras palavras, o futebol brasileiro geralmente é pensado (e praticado) somente no nível tático, não estratégico; as decisões são fragmentadas e casuísticas, não sistêmicas. Como a metáfora do título sugere, para acabar com a “dança das cadeiras” os clubes resolvem desligar a música. Como dito anteriormente, ainda que a medida seja eficaz, é muito difícil que seja efetiva: para um clube sem estratégia esportiva definida, tanto faz se o treinador hoje é o mesmo de ontem; num barco à deriva, tanto faz quem é o capitão.


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