O Estado é onipresente nas nossas vidas. Os seus métodos, princípios, objetivos e funções são objeto de estudo de todas as correntes filosóficas, econômicas e, claro, políticas. No âmbito do libertarianismo, é razoável supor que a melhor, mais completa e (certamente) mais impactante análise do Estado foi feita pelo economista e filósofo Murray Rothbard na obra “A Anatomia do Estado”, uma obra-prima sobre a estrutura e funções do Estado moderno.
Porém, assim como ocorre no campo homônimo da biologia, uma das grandes utilidades da anatomia é identificar simetrias e similaridades entre estruturas e funções dos sistemas e órgãos em diferentes espécies. Por isso, foi inevitável ler “A Anatomia do Estado” e identificar que essa anatomia não está presente somente no “Leviatã” estatal, mas também em outros sistemas. Este ensaio visa fazer exatamente isso: aplicar o mesmo método de “A Anatomia do Estado” para fazer a anatomia de outro sistema, no caso o sistema esportivo.
O QUE O SISTEMA ESPORTIVO NÃO É
A resposta a essa pergunta já ajuda a responder uma outra que o leitor pode estar se fazendo: “por que o título do texto não é ‘A anatomia do esporte’?” Exatamente porque o sistema esportivo não é o esporte, não são os atletas (profissionais ou amadores), não são as competições.
Os esportes sempre estiveram presentes em civilizações humanas, muito antes da própria noção de Estado existir. No caso específico dos esportes “modernos”, é razoável afirmar que, assim como praticamente todas as coisas boas de que desfrutamos atualmente, são fruto do capitalismo; a maioria dos esportes mais populares foi criada (ou adaptada) no Reino Unido e nos Estados Unidos durante o século XIX, no período pós-Revolução Industrial e pós-independência, como produto direto de uma demanda gerada e expandida pelo próprio sucesso do capitalismo: lazer. Ninguém poderia imaginar que uma sociedade agrícola tivesse tempo e recursos para construir campos e quadras (e depois estádios e ginásios) dedicados exclusivamente à prática de “brincadeiras para adultos” (em especial idosos) com tempo ocioso demais. Os ganhos de produtividade e a possibilidade de acumulação de riqueza trazidos pelo capitalismo estão, portanto, na raiz da criação dos esportes.
O capitalismo também foi fundamental na difusão global desses esportes. Foi exatamente por meio dos investimentos feitos por empresas britânicas e americanas em todo o globo que os esportes foram “levados de navio” junto com os marinheiros, operários, maquinistas e demais profissionais que trabalharam na construção de ferrovias, linhas de transmissão de energia, minas e tantas outras atividades econômicas. No Brasil, uma profusão de clubes de futebol ferroviários e portuários foi criado exatamente assim. Na Argentina, os mais tradicionais clubes de futebol têm nomes ingleses também por essa razão.
Por mais evidente que seja, é importante dizer que tudo isso aconteceu muito antes da criação do “movimento olímpico”, origem do atual sistema esportivo, em 1894. Não é coincidência que o grande idealizador desse “movimento”, que redundou na criação do Comitê Olímpico Internacional, foi um aristocrata francês, Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin; é intuitivo que alguém intimamente ligado ao Estado e à “nobreza” (a arte de viver às custas do Estado sem trabalhar) fosse o responsável por tal movimento. Foi dele a ideia de refundar os Jogos Olímpicos, um grande festival religioso e esportivo que acontecia na Grécia Antiga. Obviamente, os “Jogos Olímpicos da era moderna” foram, desde o princípio, idealizados a partir da mesma estrutura dos Estados-nação. Os times e atletas não representariam os seus clubes, suas famílias ou as empresas para que trabalhavam, e sim os seus países.
O QUE O SISTEMA ESPORTIVO É
A criação do Comitê Olímpico Internacional foi o primeiro passo para que o “movimento olímpico” e o sistema esportivo criado a partir dele adquirisse a “imagem e semelhança” do Estado.
Assim como o Estado, o sistema esportivo é uma organização de poucas pessoas, burocratas de todas as regiões do mundo, que exercem um poder geograficamente localizado e, de tempos em tempos, se reúnem para decidir os destinos de atividades praticadas e admiradas por bilhões de pessoas em redor do globo.
Assim como o Estado, eles também contam com o monopólio da força. A diferença é somente de domínio: se o Estado tem um monopólio ilimitado do uso da força sobre um determinado território, o sistema esportivo conta com um monopólio sobre um pequeno conjunto de atividades humanas (o esporte); porém, o sistema esportivo não tem limitação territorial ao seu poder. Se você acha essa afirmação um exagero, apresento-lhe a “autonomia desportiva”: assim como acontece no Brasil (art. 217 da Constituição), os Estados via de regra garantem às entidades de administração do esporte autonomia para organizar e gerir o esporte da forma que bem entenderem. Isso significa não só ditar as regras do impedimento ou a distância entre a cesta e a linha de 3 pontos, mas também uma rede internacional de tribunais próprios, com normas e ritos próprios, e poder para decidir sobre os destinos de todos aqueles que se engajem em atividades esportivas, com competência inclusive para banir uma pessoa permanentemente do esporte.
Assim como o Estado, o sistema esportivo usa essa força contra dissidentes se apoiando em fábulas coletivistas. Se, no caso do Estado, essa fábula coletivista é a “vontade do povo” ou o “contrato social”, no sistema esportivo as fábulas são o “espírito esportivo”, o “jogo limpo/fair play” e o “espírito olímpico”.
Assim como o Estado, o sistema esportivo também se mantém de forma parasítica. Além dos impostos, sob a forma de taxas aplicadas sobre as receitas de bilheteria ou de negociação de direitos de transmissão televisiva, esse sistema também se mantém com base em algo que tem a mesma estrutura e funções do alistamento militar: as convocações para seleções nacionais. A participação nos eventos organizados pelas entidades administradoras do esporte, como Jogos Olímpicos e Copas do Mundo, está condicionada à convocação dos atletas pelas suas respectivas seleções nacionais. Uma vez convocados, as entidades de prática desportiva (clubes esportivos) são obrigadas a liberar os atletas para passar esse período “a serviço da nação”. Com esses eventos, o sistema esportivo arrecada bilhões de dólares em receitas de bilheteria e direitos televisivos; as entidades prometem, com esses bilhões, “fomentar o esporte” pelo mundo, mas uma boa parte (quando não a maior parte) vai parar nos bolsos dos burocratas que trabalham ou comandam essas entidades. Lembra alguma coisa?
COMO O SISTEMA ESPORTIVO SE ETERNIZA
O sistema esportivo também imita o Estado nos mecanismos usados para se eternizar. Nesse ponto, inclusive, vale uma versão adaptada do ditado “a vida imita a arte”: o Estado imita o sistema esportivo, e o sistema esportivo imita o Estado. O primeiro ponto se trata da concessão de monopólios como forma de cooptação de pessoas poderosas da sociedade: por um lado, o Estado usa essa ferramenta com o sistema esportivo, ao conceder a autonomia descrita acima; por outro, o sistema esportivo retribui o favor ao obrigar atletas a, de tempos em tempos, competir usando as bandeiras estatais.
A reciprocidade não se encerra aí. Muitos aspirantes a políticos usam o sistema esportivo como porta de entrada, assim como o sistema esportivo está em constante “diálogo” com o Estado para expandir e consolidar a sua esfera de poder. Quando se trata de megaeventos esportivos, muitas vezes as regras estatais são flexibilizadas conforme os interesses do sistema esportivo: proibições são suspensas, isenções são concedidas, fluxos de capital são temporariamente facilitados; tudo em nome de mais uma falácia coletivista, o chamado “legado esportivo”, segundo o qual o mero fato de um Estado gastar fortunas para sediar eventos esportivos vai fazer com que milhões de crianças que não praticavam esportes passem a praticar, milhões de adultos que não frequentavam eventos esportivos passem a frequentar, e que o esporte como atividade econômica experimente um “boom” (seja lá o que isso signifique). Os brasileiros ainda têm muito viva na memória essa falácia, contada à exaustão antes da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016.
Ainda que seja o maior reduto de poderosos cooptados, o Estado não é o único. O sistema esportivo também lança mão desse mecanismo junto a grandes corporações, em especial na muito conhecida “tabelinha” das regras de incentivo: o sistema esportivo, por meio do lobby, consegue emplacar junto ao Estado algum tipo de renúncia de arrecadação, desde que 1) sejam impostos devidos por grandes empresas e 2) esse dinheiro seja destinado ao “incentivo ao esporte”. Quem escolhe quem recebe o dinheiro, é claro, é algum comitê estatal criado para esse fim, no qual logicamente o sistema esportivo tem cadeiras garantidas.
Dessa forma, Estado e sistema esportivo têm o poder de escolher quem, quando e para que vai ter a possibilidade de pagar impostos para um questor diferente. Em troca, os escolhidos ganham direito à exposição da sua marca, o que já parece um negócio muito melhor do que simplesmente pagar tributos para não ser preso.
Porém, não existe bom negócio grátis. Para fazer negócios com o sistema esportivo, muitas vezes é preciso pagar boas quantias aos membros das entidades de administração esportiva. Aqui no Brasil, somente neste ano, duas confederações foram alvo de mandados de prisão e de busca e apreensão em virtude de irregularidades desse tipo. Às vezes os pagamentos são mais sutis: a maior confederação esportiva do Brasil mantém um contrato de longa data com uma agência de turismo de um “grande amigo” de um ex-presidente, e todos os clubes que disputam as Séries A e B do Campeonato Brasileiro são “encorajados” a reservar suas passagens aéreas e hospedagens por meio dessa agência.
Mas, como Rothbard aborda no livro, o Estado não pode viver somente de coerção; é necessário usar uma ferramenta que, no longo prazo, convença a população de que aquela é a melhor alternativa: a ideologia. E nesse aspecto, talvez, o sistema esportivo tenha sido ainda mais bem-sucedido; isso porque a ideia de que o esporte (e o sistema esportivo, claro) é fundamental para a sociedade é tida como verdade absoluta em praticamente todos os espectros políticos. A imagem do atleta suado, logo após sair de uma competição, pedindo “mais apoio” ao esporte, é um clássico. Sistemas educacionais inteiros podem ser construídos explorando esportes; nos Estados Unidos, não raro o departamento de esportes é o mais financiado de uma universidade, ainda que em geral os “estudantes-atletas” recebam bolsas parciais ou totais (mas não salários).
A força ideológica do sistema esportivo causa inveja no Estado. Não à toa, são inúmeros os casos de programas estatais de “desenvolvimento esportivo” cujo objetivo não tinha nada a ver com o esporte, e sim com medalhas e troféus (e, assim, visibilidade). Desde exemplos como o do Brasil, com o seu programa de atletas militares pré-Rio 2016, até o da Rússia, com um programa estatal de dopagem para atletas olímpicos (muito bem relatado no documentário “Ícaro”), associar-se à força ideológica do esporte é uma prática desejada por dez entre dez políticos. Essa prática, inclusive, ganhou nome: sportswashing; Estados usam o sistema esportivo de várias maneiras para fazer propaganda e “limpar a sua barra” por violar liberdades individuais ou simplesmente não ser capaz de fazer o que se propõem a fazer.
Uma frase que resume a admiração do aparato estatal pelo aparato esportivo é atribuída a um político paranaense (e ex-presidente de clube de futebol) que até hoje dá nome à Assembleia Legislativa do Estado: “Qualquer político, para ser bom mesmo, tem que fazer pós-graduação em futebol”. Obviamente, ele não estava falando de aprender a cabecear ou cobrar faltas.
COMO O SISTEMA ESPORTIVO CRESCE
A autonomia conferida pelos Estados ao sistema esportivo confere a este o mesmo mecanismo daqueles para crescer: considerando que ele faz as regras e toma as decisões, dizendo o que vale ou não, o seu crescimento é determinado exclusivamente por ele. O uso da tecnologia, os conceitos de doping, a criação de seleções nacionais de “não-países” que sequer são reconhecidos pela ONU (desde Samoa Americana até a Inglaterra), a alocação de países em continentes geograficamente distantes (como Israel nas competições europeias e a Austrália nas competições asiáticas), a decisão sobre quais esportes são ou não olímpicos, tudo isso está dentro da esfera de poder do sistema esportivo.
Se cada vez mais grupos de jovens decidem sair andando de skate pelas ruas fazendo manobras, logo se cria uma Federação Internacional de Skate, que se filia ao Comitê Olímpico Internacional e passa a credenciar Federações Nacionais, que passam a se organizar para dizer qual é o diâmetro e material permitido para as rodinhas; se o trabalho for bem feito, após alguns anos os burocratas estarão celebrando a entrada do skate nos Jogos Olímpicos. Não importa se as competições de skate existem há anos, e se a maior delas é organizada por um canal de TV americano.
Se uma dúzia de clubes de futebol decidem criar uma competição entre si, logo o sistema esportivo aparece dizendo que isso é inadmissível, uma manifestação de ganância, ameaçando os atletas desses clubes de não poder disputar a Copa do Mundo e apelando para a ajuda (claro) dos políticos para criar uma “melhor regulamentação” do mercado do futebol que inclui regras de movimentação societária equivalentes às aplicáveis a entidades financeiras (afinal, o perigo de um banco quebrar e de um clube ser rebaixado parecem equivalentes).
Se um inventor cria um spray com espuma degradável que facilita as marcações de posições da bola e da barreira em um jogo de futebol, logo o sistema esportivo se apropria da invenção sem pagar um centavo e obriga o inventor a enfrentar uma batalha judicial de mais de uma década para receber os royalties a que tem direito.
PODER SOCIAL E PODER ESTATAL
Bola nos pés de Messi na linha do meio-campo. Ele passa para Neymar, livre pela esquerda. O brasileiro avança até a intermediária, dribla o marcador, e percebe que Mbappé está entrando em alta velocidade na área; ele faz o lançamento, e o francês chega batendo de primeira, no ângulo. Golaço do Paris Saint-Germain. A torcida festeja, os amantes de futebol sorriem, o clima é de alegria.
A transmissão corta para o presidente do PSG, sorridente, aplaudindo efusivamente. Ele acumula o cargo com os de CEO da Qatar Sports Investments (QSI), fundo de investimentos vinculado ao governo do Catar, presidente da Federação de Tênis do Catar (QTF) e vice-presidente da Federação Asiática de Tênis (ATF), presidente da Associação Europeia de Clube (ECA) e membro do Comitê Executivo da União de Associações de Futebol Europeias (UEFA).
Nascido no Catar, ele chegou ao cargo em 2011, quando a QSI comprou o controle do clube parisiense. Ex-tenista profissional de carreira medíocre (sua melhor colocação no ranking foi 995º), nada indicava que um dia seu rosto estaria associado a uma jogada de três dos maiores craques de futebol da atualidade.
O Catar sediará no ano que vem a Copa do Mundo de futebol, depois de ganhar uma disputa em que ficou comprovado que diversos dirigentes da FIFA receberam suborno em troca do voto, num escândalo que ganhou o nome de “Fifagate”. Os estádios estão quase todos prontos, com quase uma centena de operários mortos e diversas denúncias de trabalho escravo. A seleção brasileira já está classificada, e Neymar é nome certo no alistamento militar, digo, convocação da seleção para a Copa.
Ah, a emissora que transmite o campeonato francês também é controlada pelo QSI, enquanto os aviões militares comprados pelo Catar são fabricados por uma empresa estatal francesa. Uma mão lava a outra, e as duas lavam… bem, o que quiserem.
Rothbard distingue o poder social, aquele do homem sobre a natureza, do poder estatal, aquele do Estado sobre o homem. Messi, Neymar e Mbappé controlam a bola, a grama, o vento, as leis da física, enquanto o seu destino é controlado pelo aparato de um Estado. Talvez aquele político tivesse razão: “Qualquer político, para ser bom mesmo, tem que fazer pós-graduação em futebol”.
Deixe um comentário