Um remédio para a nossa febre de bola

Terminei de ler recentemente o espetacular livro “Febre de Bola”, de Nick Hornby.

Com um estilo de escrita leve e a típica acidez do humor inglês, Hornby relata, em primeira pessoa, por meio de crônicas cujo pano de fundo é sempre um jogo da sua equipe de coração (o Arsenal), tudo que se passou na sua vida, no futebol inglês e até um pouco do que se passou na Inglaterra no período de1968 a 1992.

Duas coisas me chamaram muito a atenção no livro: a primeira é como eu consigo encontrar semelhanças entre as histórias do autor e as minhas, até porque o livro foi escrito quando Nick tinha mais ou menos a minha idade. A segunda é como o relato que ele faz do futebol inglês e da Inglaterra é completamente diferente da visão que eu sempre tive, e mostra um cenário paradoxalmente similar ao futebol brasileiro e ao Brasil de hoje; se você odeia futebol, vale a pena ler o livro nem que seja somente pra ver uma versão britânica do nosso complexo de vira-lata.

Mas o que realmente me fascinou no livro foi a capacidade de dar respostas pra perguntas que eu me faço há anos e nunca havia conseguido responder de forma satisfatória: por que eu encaro essa situação? Por que eu continuo voltando ao estádio toda semana, pra passar frio e tomar chuva, ser tratado pior do que um bandido ou um animal pelas forças de segurança, pra ver um “espetáculo” sofrível e, via de regra, sair decepcionado? Isto aqui não deveria ser entretenimento? Que tipo de entretenimento macabro é este, em que muitas vezes eu arrisco a vida pelo simples fato de estar usando uma camisa do meu time, pra pagar caro numa cerveja quente e um pedaço de pizza gelado, e sentar no concreto, visão meio encoberta por uma pilastra, enquanto xingo três sujeitos de preto (ou amarelo) que, tenho certeza, estão aqui cometendo essas atrocidades apenas porque não suportam o peso do fato de a mãe deles trabalhar num prostíbulo?

O livro é, em grande medida, uma sessão de terapia pra qualquer torcedor apaixonado de futebol. De futebol não, pra qualquer torcedor apaixonado pelo seu clube (dane-se o futebol).

Mas o livro também é um relato vívido de algo que, dito hoje, parece piada: o futebol inglês era uma grande bagunça, os clubes e federação abusavam da paixão de milhões de pessoas com a sua desorganização e preguiça de fazer um bom trabalho, e vidas foram colocadas em risco (muitas foram perdidas) graças ao fato de que, tratados como animais selvagens, os torcedores passaram a se comportar como (surpresa!) animais selvagens.

É difícil explicar para alguém que não acompanha futebol que dois grupos de torcedores entraram em confronto armado numa quinta-feira de manhã porque durante a madrugada um grupo resolveu espalhar cabeças de porco e faixas com mensagens ofensivas e ameaçadoras e o grupo ofendido resolveu coletar essas cabeças de porco e faixas e “devolver” para quem as colocou lá. Isso aconteceu faz menos de dois meses aqui em Curitiba. Mas, pra quem frequenta estádios de futebol, a reação a esse relato é apenas um sorriso de canto de boca e um aceno com a cabeça, como uma avó que diz “esses meninos são muito travessos…” ou como o avô que diz “hahaha boa sacada, menino!”.

Uns tempos atrás li uma frase, não me lembro de quem, que dizia que investir em inovação no Brasil era muito fácil: era só ler o jornal dos Estados Unidos de ontem que você saberia qual inovação chegaria no Brasil amanhã. Pois bem, esse livro me deixou com a certeza de que “resolver os problemas do futebol brasileiro” também é muito fácil: basta ler livros sobre o futebol inglês de 30 anos atrás que encontraremos as soluções para todos os nossos problemas de hoje. Esqueça por um momento o fato de que o Brasil tem dimensões continentais, uma infraestrutura logística precária e uma “mina de ouro” de jogadores de futebol que qualquer outro país daria tudo pra ter: as soluções para transformar um ambiente com um gigantesco potencial inexplorado de ser a melhor e mais rica liga de futebol do mundo, com os melhores clubes, jogadores e estádios, transmitida em mais países do que o número de afiliados da ONU, estão todas aí, testadas e aprovadas pela Inglaterra, com a sua Premier League (e as quatro divisões abaixo dela); dane-se se a seleção inglesa não ganha títulos, você acha que eles se importam? O verdadeiro torcedor, aquele do autorrelato do Nick Hornby, tem uma escala clara de prioridades: seu clube, o futebol, e por último (e opcional) a sua seleção nacional.

Os ingleses, talvez por não carregarem o fardo das cinco estrelas no peito, sacaram isso e construíram um ambiente que se beneficia disso. Enquanto Chelsea, Manchester City, Manchester United e companhia continuarem chegando a finais e ganhando títulos dentro e fora da Inglaterra, ninguém se importa se o gol foi de um alemão num goleiro brasileiro, se o craque de um time é francês e o do outro é belga.

Enquanto isso, no Brasil, em meio à nossa bagunça, em que a volta do público aos estádios parece um sonho distante devido a uma pandemia que se estende muito além do necessário (e que contaminou quase metade dos jogadores da nossa primeira divisão no ano passado), os campeonato estaduais se encerram (ou não, como é o caso do Paranaense) e dão espaço a um Campeonato Brasileiro que já começou para as três principais divisões e que não vai parar pra disputa da Copa América (que, a 10 dias do seu início, foi transferida para cá), com os (pouquíssimos) jogadores que jogam por clubes daqui e têm talento suficiente pra jogar por uma seleção nacional jogando a Copa, não o “Brasileirão” (um nome superlativo que combina cada vez menos com o tamanho do campeonato em relação à concorrência).

E quem faz futebol no Brasil parece conformado em ter como objetivo formar e revelar jogadores para que eles atravessem o Atlântico e mostrem seu talento para o mundo por lá, enquanto nós só podemos ver pela TV (ou pelo celular, ou pelo computador), salvo por algumas poucas ocasiões, em que eles retornam pra vestir a camisa amarela (ou azul, ou branca, ou verde) e jogar por aqui, por um time que, como eu disse, é no máximo a terceira prioridade do torcedor.

Durante o ano, num domingo qualquer, o que temos é um time formado por jogadores que, na nossa visão, não merecem lugar nem na seleção do nosso bairro; às vezes, parece que torcemos por um jogo ruim, contra um adversário ruim, num horário ruim, porque assim o estádio está (ainda) mais vazio, as filas são menores, tem mais espaço de concreto gelado pra acomodarmos nossos traseiros.

O Nick Hornby faz uma comparação, que só foi possível por ter sido escrita 30 anos atrás, entre o torcedor e uma pessoa com necessidades especiais: todos os eventos da vida do sujeito são dependentes e limitados pela sua relação com o time, pelo seu desempenho, pela sua agenda de jogos. No Brasil, o futebol também parece portador de necessidades especiais, uma necessidade constante de se mutilar, de tirar o mais rápido daqui qualquer coisa que o possa fazer bem. Como diriam os ingleses, “ao vencedor, as batatas”, e a nós, os perdedores, as migalhas. Será que estamos dispostos a tomar o remédio pra nossa febre de bola? Ou vamos deixar o vírus continuar se disseminando, se mutando, e matando pouco a pouco todos nós, torcedores de futebol?

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