A falta de cuidado dos clubes brasileiros com os seus jogadores


Por que os clubes de futebol brasileiros cuidam tão mal dos seus principais ativos?

Existe um mito muito popular no mundo do futebol: o de que os jogadores têm tudo “do bom e do melhor” pra exercer sua profissão. Não raro, surge nos “papos de bar” a frase: “eles só comem, dormem e jogam”.

OK, não sejamos hipócritas: houve muitos avanços nos últimos anos. Nos últimos 20 anos, vimos os cuidados com os jogadores ganharem reforços de peso em áreas como nutrição e fisiologia. Nos últimos 10 anos, a análise de desempenho e a ciência de dados (áreas em que eu trabalho) também ganharam espaço. Mas o caminho ainda é muito longo, e áreas como psicologia e assistência social simplesmente não decolam; talvez por não saberem falar “boleirês”, esse(a)s profissionais têm muita dificuldade de conseguir mostrar seu real valor e fazer um trabalho efetivo com os atletas, em especial no futebol profissional.

Na base, devido às exigências pra obtenção do certificado de clube formador, a estrutura de apoio extracampo costuma ser maior. Todos os clubes formadores são obrigados a dar assistência psicológica e pedagógica aos atletas, além de alojamentos dignos e refeições planejadas por nutricionista. Mas a realidade é que a maior parte dos clubes provê essa estrutura não para de fato cuidar do jogador, e sim pra “cumprir a lei” e obter um ganho econômico com isso (os mecanismos de solidariedade e compensação por treinamento).

Ironicamente, no futebol profissional os atletas estão ainda mais desassistidos nos assuntos extracampo. No que diz respeito direto a performance, como os setores técnico e de saúde, a estrutura costuma ser “de primeiro mundo”. Mas, para tudo aquilo que não diz respeito a “campo e bola”, a assistência costuma ser precária mesmo em clubes da primeira divisão.

Todos sabemos que a rotina dos jogadores de futebol e membros de comissão técnica é bastante heterodoxa. Além da pressão da torcida e da mídia, e da rotina de concentrações e viagens constantes, ainda é necessário que a adaptação a uma nova cidade ou país seja a mais rápida e fácil possível. Tudo isso em um contexto que demanda que apresentem performance esportiva de excelência toda semana, criando um cenário desafiador e cheio de riscos.

Atividades simples como ir ao banco, escolher uma casa pra alugar, ou uma escola para matricular os filhos, podem se tornar distrações imensas e demorar muito mais tempo pra serem resolvidas. Isso sem falar nas famosas “dificuldades de adaptação”, seja por uma língua ou cultura diferente, seja por não haver rotinas de onboarding (recepção e integração) bem definidas.

Nesse sentido, faz falta um setor ou ao menos um profissional dentro do departamento de futebol especializado na gestão de projetos relacionados aos atletas. Algo que é bastante comum em vários clubes da elite mundial, mas que ainda é a exceção no Brasil. Na Inglaterra, esse profissional é chamado de liaison officer (“gestor de ligação”, em tradução livre), e está presente em todos os clubes de primeira e segunda divisão. Em outros lugares, ele é chamado de player care manager (gerente de cuidados com o jogador), um nome autoexplicativo.

O principal objetivo desse setor é dar as condições para que atletas e comissão técnica estejam o maior tempo possível disponíveis e focados nas atividades do dia a dia da equipe. Isso pode se dar de diversas maneiras, seja com os profissionais desse setor assumindo tarefas de apoio prático aos atletas e membros de comissão técnica e às suas famílias, seja gerenciando projetos e processos multidisciplinares de apoio ao atleta. Também é papel desse profissional auxiliar nas eventuais barreiras linguísticas, quer de forma eventual, quer de forma permanente, sugerindo e indicando um tradutor.

Alguns exemplos de projetos que são geridos pelo setor de player care:

Onboarding dos atletas e comissão. Desde os trâmites burocráticos necessários para a regularização do atleta ou treinador (como o fornecimento e obtenção de documentos, registros, vistos e autorização de trabalho) até o seu acolhimento dentro do clube (com fornecimento de detalhes sobre a cultura, história, benefícios e organograma).

– Aparições públicas e participação em campanhas publicitárias: o setor de player care fica responsável por intermediar a relação entre as áreas de negócios do clube e os atletas e membros de comissão técnica, facilitando a conciliação de agendas e o alinhamento de expectativas para a realização de ações, como a presença em veículos de imprensa, participação em ações publicitárias e de relações públicas, e qualquer outro tipo de aparição como representante do clube.

– Integração cultural: em especial com a presença cada vez maior de jogadores e treinadores estrangeiros, é necessário um maior cuidado para auxiliar na sua adaptação e das suas famílias à cultura local, desde sanar dúvidas pontuais sobre comportamento e costumes até fornecer informações sobre educação, religião e alimentação. Isso também se aplica na integração da família ao ambiente do clube, desde questões relacionadas ao vínculo de trabalho (ex.: cadastro de dependentes no plano de saúde) a questões como a recepção em dia de jogo e coordenação de ações especiais envolvendo a família (Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das Crianças).

– Assistência Pessoal: A rotina dos atletas e comissão técnica muitas vezes impede ou retarda a solução de pequenos problemas práticos do dia-a-dia. Atividades como encontrar moradia, escolas para filhos, templos religiosos, e locais para alimentação e lazer, abertura de conta bancária, dentre outras, podem se tornar uma distração desnecessária e refletir na performance. O Player Care Manager pode desenvolver as rotinas e atuar como um concierge nessas questões cotidianas, facilitando a adaptação do profissional e permitindo que ele foque nas atividades do dia a dia da equipe.

– Atletas emprestados: Ainda que o setor de análise de desempenho e/ou mercado possa manter um controle das atividades do atleta emprestado em campo, em geral há pouco acompanhamento tanto das atividades extracampo dos atletas emprestados quanto do onboarding desse atleta no regresso ao clube. O Player Care Manager pode servir como ponto focal para os atletas emprestados e manter uma base de dados atualizada sobre a sua situação.

Mas qual o perfil do profissional que trabalha no setor de player care? Assim como em outras áreas do futebol, a formação importa menos do que as características comportamentais e a ética de trabalho, até porque o profissional que ocupa essa posição precisa ter um conjunto muito específico de habilidades.

Em termos de comunicação, precisa saber falar tanto a “linguagem da bola” quanto a linguagem corporativa. Também é importante que seja capaz de se comunicar com desenvoltura, tanto de forma oral quanto escrita, e no maior número de idiomas possível.

É preciso também ter a mesma disposição dos profissionais do departamento de futebol, para poder se dedicar ao trabalho em dias e horários alternativos. Ao mesmo tempo, boa parte do trabalho é feita de forma presencial e durante o horário “comercial”.

Também é necessário que tenha experiência multicultural e, ao mesmo tempo, conheça bem a cidade e o país, para agir como um facilitador na adaptação de pessoas vindas de outras cidades e países.

Obviamente, pra atrair um profissional capacitado, é preciso oferecer uma remuneração condizente. Esse talvez seja o ponto mais crítico: em geral o futebol paga pouco e exige muito de quem está fora das quatro linhas. Como eu costumo dizer, “vai custar menos do que o seu terceiro lateral”. Infelizmente, ainda é preciso mostrar um enorme retorno sobre o investimento pra convencer um dirigente. Pois bem, vamos tentar:

Ainda que o retorno sobre o investimento possa parecer intangível, algumas ações podem dar uma ideia da importância desse tipo de operação. Considerando o custo por partida de um atleta ou treinador de um clube de Série B, é razoável supor que, caso a ação do Player Care Manager seja determinante para que atleta ou treinador estejam disponíveis em 2 (duas) partidas adicionais durante o ano, o investimento já daria um retorno positivo.

Por outro lado, é possível encontrar alguns exemplos de riscos que o Player Care Manager pode ajudar a mitigar ou eliminar: desde a adaptação do jogador, passando por dificuldades com a língua, assistência familiar, xenofobia e eventuais danos à imagem do clube, o profissional pode monitorar e prevenir esses riscos e gerar um grande retorno indireto ao clube.

A criação do setor de Player Care dentro dos clubes de elite parece ser necessária e pode se tornar um diferencial na hora de atrair os melhores talentos. Depois de fazer grandes investimentos para contratar, o clube pode e deve oferecer as melhores condições para que os atletas e membros da comissão técnica possam se preocupar com aquilo que mais importa: as vitórias em campo.

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