Autor: carlos.vagetti

  • Fim da “dança das cadeiras”​ no futebol brasileiro: será que é só parar a música?

    A CBF propôs e os clubes decidiram: em 2021, tanto a Série A quanto a Série B terão limitações no número de trocas de treinador. Em resumo, durante o Campeonato Brasileiro, cada clube só vai poder demitir um treinador, e cada treinador poderá pedir demissão somente uma vez.

    A decisão foi comemorada por alguns, criticada por outros, mas debatida por praticamente todos aqueles que trabalham no futebol ou o estudam. O fato de ter sido aprovada pela margem mínima entre os clubes da Série A (11 a 9) também deixou claro que o assunto passa longe de ser consenso entre os próprios clubes. Nem mesmo entre os treinadores a medida foi unanimidade: se o presidente da Federação de Treinadores comemorou, Vanderlei Luxemburgo fez críticas, questionando inclusive a legalidade da medida.

    Ok, vamos deixar de lado a análise jurídica, assim como a análise econômica (que nos indica que a restrição cria uma barreira à entrada e causará um aumento nos salários pedidos pelos treinadores). O foco deste texto é sobre os possíveis impactos estratégicos da medida.

    Em gestão, fala-se muito sobre a aplicação dos “3 E’s”: Eficiência, Eficácia e Efetividade. Sendo bem simplista, eficiência é “fazer mais com menos”, eficácia é atingir o fim desejado, e efetividade é quando o atingir o fim desejado traz benefícios desejados.

    A primeira pergunta é: a medida aprovada é (ou pode ser) efetiva? O objetivo da medida é reduzir a rotatividade de treinadores. Mas por que queremos isso? Suponho que seja pela premissa de que, com menor rotatividade, a estratégia esportiva do clube tem mais chances de ser atingida. Mas essa premissa é verdadeira? E quando a estratégia esportiva do clube não depende da continuidade do treinador para ter sucesso?

    Parece absurdo? Pois trago dois exemplos bem claros: Athletico Paranaense e Flamengo, os dois clubes que mais trocaram de treinador na “era dos pontos corridos”, obtiveram nos últimos anos sucesso na estratégia esportiva com alta rotatividade de treinadores. O Flamengo foi campeão brasileiro trocando o treinador a poucos meses do fim do campeonato. Já o Athletico é reconhecido por ter desenvolvido o “Jogo-CAP”, um projeto de futebol que precede o projeto técnico e, assim, reduz a relevância estratégica do treinador para a sua execução; não à toa, o CAP passou a “formar” treinadores em suas equipes secundárias, os quais frequentemente são promovidos ao time principal, evitando a contratação de um treinador externo. Mais um exemplo: o Palmeiras, campeão da Libertadores e da Copa do Brasil, também trocou de treinador durante a temporada (curiosamente, o clube votou a favor da nova regra).

    Um argumento relevante a favor da medida pode ser o de que somente os 4 clubes rebaixados da Série A em 2020 não teriam cumprido a nova regra, ou seja, aqueles que tiveram o pior resultado desportivo foram exatamente aqueles que “trocaram demais”. Outro argumento relevante se traduz no deprimente exemplo do Santos: de acordo com seu presidente, o clube está atualmente remunerando 7 ex- treinadores (além do atual, Ariel Holan), com os quais tem uma dívida de R$ 15 milhões.

    Mas é importante ter em mente que o fato de dois eventos acontecerem ao mesmo tempo não significa que um causou o outro. Talvez (e parece mais provável) tanto a troca de treinadores quanto os rebaixamentos tenham sido, ambos, causados por outros erros de planejamento e gestão, ou mesmo por problemas crônicos (como o alto endividamento, as disputas políticas internas ou a ausência de um planejamento de longo prazo).

    O caso do Santos é ainda mais curioso: mesmo contando com praticamente todos os elementos desse “pacote”, o clube quase conquistou a Libertadores.

    Próxima pergunta: menor rotatividade realmente é melhor pro clube em qualquer hipótese? Será que a alta rotatividade não pode ser muito mais um sintoma de problemas do que a causa?

    Outros fatos a levar em consideração:

    1. a proposta não veio dos clubes, e sim do Presidente da CBF Rogério Caboclo;
    2. não é a primeira vez que a proposta é feita, tendo sido rejeitada em outras oportunidades;
    3. como já dito, a decisão foi por margem mínima (11×9).

    A aprovação pelos clubes da Série B foi mais “folgada” (18×2), mas, por ter sido votada um dia após a aprovação na Série A, pode ter sido muito mais um “efeito boiada” do que uma decisão seriamente ponderada e tomada em um nível estratégico.

    Também é sintomático o depoimento do presidente do EC Bahia, Guilherme Bellintani, em seu perfil no Twitter:

    Por que o Bahia votou contra a proposta que limita dois treinadores no Brasileirão?

    1. O Fair Play Financeiro do futebol brasileiro, projeto muito importante elaborado ao longo de anos, deveria começar a ser implantado no país em 2021, com punições progressivas aos clubes que gastam mais do que podem. Isso foi aprovado e bastante divulgado.

    2. Na reunião do Conselho Arbitral de 2020, o Bahia já havia lamentado a lentidão prevista para aplicação das penas no projeto brasileiro. Ainda assim, tínhamos esperança que em 2021 fossem iniciadas as punições aos clubes que colocam em campo times que não podem bancar.

    3. Para nossa surpresa, o assunto foi ‘esquecido’ em 2021. As penas previstas, que já eram brandas, simplesmente foram desconsideradas e a implantação real do projeto seguirá indefinida. ‘Podem contratar e não pagar’, é a mensagem perpetuada por mais uma temporada.

    4. Para tentar dar um ar de modernidade ao Campeonato deste ano, à margem da real transformação que seria o Fair Play Financeiro, propõe-se uma medida aparentemente bonitinha, mas pouco transformadora: a limitação de contratação de treinadores.

    5. Ora, se não haverá punição aos clubes que gastam mais do que arrecadam, se todo mundo pode continuar dando calote, se insistiremos em adiar mudanças realmente estruturantes, não venham controlar quantos treinadores eu devo ou não devo contratar em um campeonato.

    6. O intervencionismo só faz sentido se for sistêmico. Sendo pontual, para dar falsa impressão de modernidade, com o respeito que tenho a todos, não contarão com meu carimbo. A velha máxima de ‘vamos mudar alguma coisa para permanecer tudo como está’ não terá o meu apoio.”

    Impossível ignorar essa declaração. Ainda mais vinda de quem vem: o Bahia passou, na última década, por um dos processos de “turnaround” mais espetaculares do futebol brasileiro. De um clube em estado falimentar, cuja gestão passou a ser feita por um interventor nomeado pela Justiça em 2013, o clube implementou um choque de gestão, se profissionalizou, saneou suas finanças e não só se tornou presença garantida na Série A como passou a ter uma capacidade de investimento superior a clubes com receitas muito maiores. Agora, com as finanças saneadas, depois de tomar com diligência todas as doses de um remédio muito amargo e com alguns efeitos colaterais, o clube gostaria de ver todos aqueles que padecem da mesma doença fazerem o mesmo tratamento.

    Esse é o grande problema das regras “vindas de fora”, ainda mais numa discussão tão apertada (11×9). Elas atacam sintomas, não a doença, e têm potencial para causar mais mal do que bem. É como um remédio para tosse: ele trata da mesma forma um sintoma de algo que pode ser uma doença grave, mas pode também não ser nada.

    Tudo que envolveu a medida também é sintoma de uma outra doença, talvez a mais grave a afligir o futebol brasileiro: a falta de um pensamento sistêmico e de uma mentalidade estratégica. O final da fala de Bellintani é claro nesse sentido. A falta desses dois ingredientes faz com que a complexidade do futebol seja ignorada, e as decisões sejam tomadas com base em “receitas” ou modas: ora é o treinador estrangeiro, ora é o “manager”; se o jogo da moda é o de posição, não importa muito se o elenco e a tradição do clube são mais compatíveis com outro estilo; se está na moda ter executivo de futebol, contrata-se alguém para o cargo (nem que seja somente para acatar e executar as ordens do vice de futebol).

    Em outras palavras, o futebol brasileiro geralmente é pensado (e praticado) somente no nível tático, não estratégico; as decisões são fragmentadas e casuísticas, não sistêmicas. Como a metáfora do título sugere, para acabar com a “dança das cadeiras” os clubes resolvem desligar a música. Como dito anteriormente, ainda que a medida seja eficaz, é muito difícil que seja efetiva: para um clube sem estratégia esportiva definida, tanto faz se o treinador hoje é o mesmo de ontem; num barco à deriva, tanto faz quem é o capitão.

  • MLS, Brasil e nosso museu de grandes novidades

    Semana passada tive a oportunidade de acompanhar duas aulas com o Diogo Kotscho, Senior VP de Comunicação do Orlando City.
    Além da união e cooperação entre equipes (principal lição que o futebol brasileiro pode tirar da MLS), como se esperaria de uma liga, o que chamou muito a minha atenção é como a visão do clube de futebol como um produtor de eventos e conteúdo é a base de tudo que eles fazem.

    Nas palavras do Diogo, não existe um post em rede social, vídeo ou material gráfico do Orlando City que não tenha saído de dentro do próprio clube; eles têm dentro da sua estrutura uma produtora audiovisual e uma agência de publicidade.

    Se o trabalho deles é bom? E se eu te disser que o primeiro troféu do Orlando City no ano foi um Emmy? O episódio 1 da série-documentário Bleed Purple acabou de ganhar o mais importante prêmio de programas de TV do mundo. Se quiser conferir:

    Mas o que isso tem a ver com futebol? Simplesmente tudo. Foi exatamente pela capacidade de produzir conteúdo digital de qualidade que o clube conseguiu entregar aos seus 40 (isso mesmo, 40) patrocinadores o retorno esperado e assim manter boa parte das suas receitas, o que permitiu que eles não só mantivessem as contas em dia (o que na MLS não tem nada demais) mas também não demitissem nenhum (isso mesmo, zero) colaborador durante a pandemia.

    Quer mais? Foi iniciativa do Orlando City a criação de uma “bolha” em plena pandemia, usando a estrutura dos complexos ESPN/Disney de Orlando, que permitiu a realização do torneio “MLS is Back” entre julho e agosto do ano passado. A ideia foi tão boa e tão bem executada que a NBA copiou e fez a sua própria “bolha”, dentro do mesmo complexo e sem que houvesse nenhuma comunicação “interbolhas”, para concluir a sua temporada 2019/20.

    Mas sabe qual foi a maior ironia pra mim? O Diogo é brasileiro. O Alex Leitão (CEO) é brasileiro. E o acionista majoritário e chairman é o Flávio Augusto da Silva (que, caso você não saiba, também é brasileiro). E não são daqueles brasileiros “com asterisco”, que moram nos EUA desde criança ou são americanos filhos de pais brasileiros: são caras com carreiras consolidadíssimas aqui no Brasil.

    É inevitável a pergunta: por que um clube com tantos brasileiros está implementando um projeto tão bem-sucedido… nos EUA? Diogo com a resposta: “somos uma empresa americana, com uma cultura empresarial americana e uma base de clientes americanos”.

    E essa, pra mim, foi a lição final de tudo que ele falou: o nosso problema é cultural. Nossos clubes não têm marcas, têm brasões. Nossos clubes não têm consumidores, têm “fanáticos”. Nossos clubes levam a rivalidade de dentro de campo para os arbitrais, para a imprensa, para as negociações de patrocínio… Enfim, nossos clubes são instituições centenárias cuja cultura está coberta de poeira e ferrugem, cujas estratégias de negócios não evoluíram (se é que existiram).

    Felizmente, esse paradigma está sendo superado. Palmeiras, Flamengo, Fortaleza, Ceará, Bahia, Athletico-PR, América-MG, dentre outros, começam a colher no campo as mudanças que fizeram nos escritórios. Mas eu me pergunto se ainda dá tempo, e quando teremos umas Série A com 20 clubes minimamente organizados. A destruição de valor promovida (internamente) no futebol brasileiro nas últimas décadas foi assustadora, e, enquanto lá fora se discutem a negociação de direitos de streaming, SPACs esportivas, entrada de fundos de private equity e criação de “superligas” multinacionais, aqui ainda não conseguimos colocar 20 dirigentes numa sala pra chegar a um acordo sobre transmissão em TV fechada, o que criou no ano passado uma série de “jogos fantasma”, sem audiência dentro ou fora do estádio.

    Que o futebol brasileiro consiga evitar o caminho de se tornar um “museu de grandes novidades”, em que problemas antigos são debatidos incessantemente, como se fossem novos, sem que se chegue a uma conclusão. Que os amadores, cuja habilidade política leva ao comando dos clubes, saibam dar espaço aos profissionais para que trabalhem e resgatem o futebol brasileiro. Ou então eles vão continuar aparecendo pra dar aula e contar casos de sucesso da sua experiência na MLS.

  • Explicando – a mente (episódio 2: sonhos)

    (Este é o segundo texto sobre a série Explicando – A Mente. Se você quiser ler o primeiro, clique aqui. Ah, e tem spoilers!)

    Você sabia que Mary Shelley teve a ideia que originou Frankenstein durante um sonho? E que Mick Jagger também sonhou com Satisfaction? E o que dizer desse cara, que afirmava que seus quadros eram reproduções fiéis dos seus sonhos?

    Olha ele tentando imitar as máscaras de La Casa de Papel…

    Grandes personagens, grandes sonhos, grandes descobertas. Mas o que, afinal, nós sabemos sobre os sonhos?

    Esse tema intriga as pessoas há muito tempo. O primeiro registro de um sonho de que se tem notícia é de um rei da Mesopotâmia, e já naquela época havia uma “intérprete” para ajudá-lo a compreender o significado dos seus sonhos. Durante muito tempo, os sonhos foram inclusive interpretados como mensagens divinas. Mas será que existe mesmo significado?

    O que sabemos é que, um tempo depois de dormir, atingimos um estado profundo de sono, em que o nosso cérebro inteiro parece estar acordado, exceto por uma parte: a responsável pelos movimentos. Estamos ali, paralisados enquanto experimentamos um turbilhão de sensações, e a única parte do corpo que conseguimos mexer são os olhos. Por isso, essa fase do sono é chamada de REM (de Rapid Eye Movement, Movimento Rápido dos Olhos, em inglês). É assim que passamos cerca de um quinto do nosso sono: vivendo intensamente num mundo de fantasia, e interagindo com ele apenas com os olhos.

    Aparentemente, os sonhos não têm lógica nenhuma. E não é por falta de tentativas de achar significado: ao longo da História, muitos foram os filósofos e cientistas (e alguns charlatães, claro) tentando dar significado aos sonhos. Recentemente, na virada do século XIX para o século XX, dois deles reacenderam o debate sobre o significado dos sonhos: Santiago Ramón y Cajal, o pai da neurociência, e Sigmund Freud, o pai da psicanálise; enquanto o primeiro via nos sonhos uma “tempestade elétrica” que estimulava aleatoriamente os neurônios (os quais, aliás, ele havia descoberto), e, assim, causava a construção de histórias malucas e sem sentido, o segundo via nos sonhos um material riquíssimo de significados, memórias e desejos (especialmente sexuais).

    A relação entre sonhos e memórias é uma das mais intrigantes. De fato, parece haver uma relação muito próxima: são comuns os relatos de sonhos envolvendo fatos acontecidos durante o dia. Mas e como explicar quando isso acontece até mesmo com pessoas com sérios problemas de memória (como o pobre Henry)? Aparentemente, os sonhos são uma história cujo enredo é criado pelas memórias e emoções, de uma forma que ainda não compreendemos bem.

    Para tentar compreender melhor, o episódio mostra a história de Allison McCarthy, uma das pessoas capazes de ter sonhos lúcidos; isso mesmo, ela é capaz de controlar os próprios sonhos. Isso não é mágica ou bruxaria, longe disso: é uma habilidade, que pode ser treinada por qualquer um. Se você quiser saber por onde começar, a dica dela é simples: anote os seus sonhos; quanto mais você se esforçar para lembrar os sonhos, mais você vai conseguir notá-los, e, com o tempo, passar a controlá-los (mas cuidado, pode ser meio assustador).

    A prática do sonho lúcido tem tudo a ver com a ideia do começo: quando você está sonhando, o seu cérebro está tão acordado quanto durante o dia (às vezes até mais). Por isso, algumas pesquisas indicam que dormir ajuda inclusive a solucionar problemas. Até mesmo em ratinhos de laboratório, quando postos num labirinto e submetidos a uma soneca, foi possível observar que 1) durante o sono, havia atividade cerebral nas mesmas áreas do cérebro que estavam trabalhando enquanto eles tentavam sair do labirinto, e 2) quando acordavam, tinham mais facilidade para achar a saída.

    A propósito, parece que os sonhos não são exclusividade dos humanos (pra quem tem bichinho de estimação isso não é novidade): mamíferos, peixes, pássaros e até moluscos parecem ter algo muito parecido com o nosso sono REM.

    Mas o que só nós conseguimos usar dos sonhos é a criatividade: com tanta coisa boa criada nos sonhos de grandes artistas, vou ali dormir e ver se também tenho alguma ideia genial.

  • (Alerta De Spoiler) Explicando – A Mente

    Você viu “Explicando – A Mente”? Eu vi e conto pra você (sim, tem spoilers).

    Pra quem não conhece, “Explicando” é uma série-documentário da Netflix que explica, em episódios de menos de meia hora, temas complexos e curiosos, que vão de K-Pop à diferença de salários entre homens e mulheres.

    Pois eles resolveram usar a mesma fórmula pra explicar um tema ainda mais complexo e curioso: a nossa mente. No momento em que eu estou escrevendo este texto, estão disponíveis 5 episódios:

    1. Memória
    2. Sonhos
    3. Ansiedade
    4. Meditação
    5. Psicodélicos

    Pois, pra te poupar do trabalho, eu não só assisti a todos como vou escrever um texto sobre cada um. Mas eu recomendo que você veja mesmo assim. 😉

    Episódio 1 – Memória

    O primeiro episódio é sobre memória. Se você me acompanha há mais tempo, sabe que eu sou muito fã desse tema. Já escrevi sobre ele aquiaqui e aqui. Inclusive, estou finalizando uma resenha do livro Moonwalking with Einstein: The Art and Science of Remembering Everything, que conta exatamente a história do mundo obscuro dos “atletas da memória”.

    Quanto você lembra de algum evento marcante da sua vida? Marcante mesmo! Algo como o seu primeiro dia na escola, a morte de um parente próximo, a aprovação no vestibular… Provavelmente, menos de 50%. Pesquisadores usaram um evento muito marcante nos EUA, o atentado às torres gêmeas, pra avaliar quanto as pessoas se lembravam daquele dia. O mais impressionante não é quão pouco as pessoas lembravam, mas sim o quanto elas achavam que lembravam: as pessoas eram capazes de descrever onde estavam, com quem, o que estavam fazendo… mesmo que mais da metade dos fatos narrados não tivessem acontecido.

    No episódio, eles usam a divisão entre memória implícita (coisas que você não sabe descrever como lembra, como andar de bicicleta) e memória explícita (fatos, nomes, datas que você consegue descrever). Dentre as memórias explícitas, existem as memórias semânticas (palavras e símbolos) e as episódicas (fatos e acontecimentos).

    Apesar da divisão, algo que eles fazem questão de deixar claro é que a memória não tem um lugar específico no cérebro. Cada tipo de lembrança desperta uma parte diferente do cérebro, e essas lembranças são combinadas pelo hipocampo (você se lembra da bibliotecária?). Mas então o que acontece se uma pessoa perde o hipocampo?

    Bom, foi isso que aconteceu com um cara chamado Henry Molaison: lá na época da Segunda Guerra Mundial, como parte de um tratamento para epilepsia, ele teve uma porção do cérebro, que incluía o hipocampo, removida (e você reclamando que dói tomar vacina pra gripe, hein?). O impressionante é que, apesar de se manter aparentemente normal, com a mesma personalidade, e capaz de falar normalmente, o pobre Henry perdeu completamente a memória. Bem, completamente não: ele se lembrava muito bem de fatos ocorridos antes da cirurgia; o que ele perdeu foi a capacidade de formar novas memórias.

    Mas essa não foi a única sequela: além de perder a capacidade de formar novas memórias, o Henry perdeu a capacidade de pensar o futuro: ele não era capaz de fazer planos ou mesmo imaginar o que faria no dia seguinte. A partir disso, surgiu uma hipótese (a ser confirmada): a estrutura responsável pela formação de memórias no nosso cérebro é a mesma responsável pela imaginação! Se isso se confirmar, seria muito doido: ter uma boa memória seria capaz de te deixar mais criativo(a)! E essa hipótese se reforça quando são analisados os métodos de treinamento de uma classe muito especial de “atletas”: os campeões de memória.

    Eles mostram o caso de Yanjaa, três vezes recordista mundial de memória, que mostra no episódio um pouco da sua habilidade ao memorizar, em 5 minutos, 500 dígitos aleatórios. A técnica que ela usa? O Palácio da Memória! Com muita criatividade, ela transforma os números em letras, as letras em palavras, e as palavras em uma história que tem como cenário o seu Palácio da Memória. Basicamente, ela ativa assim as três características de um evento memorável: emoção, localização e história/narrativa.

    Ok, mas, se emoção é uma parte tão importante da formação de memória, por que pessoas criaram falsas memórias sobre o 11 de setembro? Bom, se memória e imaginação andam lado a lado, o que acontece é que uma influi na outra: você lembra de forma genérica o evento, e preenche os detalhes com a imaginação. Ou seja, a memória não funciona como o Netflix, em que você pode ver o filme quantas vezes quiser; cada memória é como um roteiro de uma peça de teatro, e a nossa imaginação é a responsável por apresentar o show em si. Portanto, nossa memória é flexível (“plástica”, diriam os cientistas), e se modifica a cada vez que aquela peça é encenada.

    O lado sombrio disso é que a criação de falsas memórias pode colocar gente na cadeia: de uma amostra de casos em que pessoas foram presas injustamente e o verdadeiro criminoso só foi descoberto pela análise de DNA, 70% tiveram uma testemunha reconhecendo o inocente como autor do crime.

    O lado bom é que a memória pode ser melhorada, e que uma das formas mais eficientes de se fazer isso é fácil, rápida e um dos meus exercícios favoritos: meditação. Quem diria que a nossa capacidade de lembrar o passado e imaginar o futuro melhora quando praticamos estar no momento presente? Se você não sabe por onde começar, comece por aqui. 🙂

    Por fim, a Emma Stone (que narra o episódio) faz um questionamento: seria essa capacidade de aliar memória e imaginação o grande segredo do sucesso da espécie humana? Ou isso seria só um sonho?

    Bom, sonho é o tema do próximo episódio…

  • Como combater os ladrões de memória

    Cuidado! Tem uma quadrilha à solta por aí!

    Calma, não precisa chamar a polícia. O que essa quadrilha está roubando não é nenhum bem material, mas é algo muito mais valioso: a sua memória.

    Sua memória se divide em três: a memória de trabalho, a memória de curto prazo e a memória de longo prazo. A memória de trabalho é a responsável por lembrar as coisas no presente; é ela que você está usando pra ler esse texto e interpretar o significado de cada palavra. A memória de curto prazo é a responsável por “guardar” aquilo que você está aprendendo enquanto a memória de trabalho está ocupada; é um “ponto de passagem” pras informações . E a memória de longo prazo é onde as informações ficam guardadas em definitivo quando a memória de trabalho tem tempo pra guardar as novas informações no devido lugar.

    A melhor biblioteca do mundo

    Imagine que o seu cérebro é uma grande biblioteca. Os livros são as informações. As prateleiras onde estão os livros são a memória de longo prazo, onde os livros estão organizadinhos por categoria, autor, data… Já a memória de curto prazo é a prateleira de triagem, onde os livros (informações) ficam esperando a bibliotecária (memória de trabalho) ter tempo pra guardar os livros.

    Essa bibliotecária (memória de trabalho) é muito esperta, e, pra facilitar o trabalho, sempre que chega um livro novo com o mesmo assunto de um livro antigo, ela “cola” um livro no outro. Ela forma, assim, blocos de informação (também chamados de chunks). Ela faz isso pra poder lidar com mais informações, porque o número de livros que ela consegue carregar por vez é bem pequeno. Se a sua bibliotecária não for muito boa, ela não vai conseguir lidar com mais de quatro livros (blocos de informação) ao mesmo tempo. Mas mesmo a melhor bibliotecária do mundo não consegue lidar com mais de nove. Isso também ajuda a construir contexto para a informação.

    O problema é que existem ladrões de olho nessa biblioteca. Esses ladrões está sempre interessado em roubar os livros. Basta que a memória de trabalho se distraia, ou fique muito tempo sem checar se está tudo em ordem, pra eles aparecerem e levarem o máximo de livros possível. O nome desses ladrões? Distrações e procrastinação.

    Você sabe do que eu estou falando. Quando estamos estudando, qualquer coisa parece mais interessante do que a matéria. Pior ainda se você estiver cansado(a)sem dormir direitode ressaca, ou sob efeito de substâncias que afetem a sua capacidade de se concentrar.

    Pra piorar, a nossa bibliotecária não é nenhuma santa. Ela só armazena os livros de que ela gosta mais: boas histórias, romances, comédias… Se for um livro sobre microeconomia avançada, ela mesmo deixa o livro na janela e finge que não está vendo o ladrão levar embora.

    Então qual o segredo?

    Primeiro de tudo, evitar distrações. Existem diversas técnicas para isso, e eu escrevi sobre aquela de que eu mais gosto recentemente: a Técnica Pomodoro.

    Outro passo importante é prender a atenção da sua memória. E como fazer isso?Conquistando o coração da memória de trabalho! Fazer com que ela associe uma emoção muito forte com aquela informação, fazê-la rir, chorar, se sentir inspirada, etc. Aí sim ela vai deixar aquele livro sempre por perto e vai estar sempre de olho!

    E como você conquista o coração da sua memória de trabalho? Contando boas histórias! Nossa memória trabalha e retém muito melhor os fatos quando estão todos “amarrados” em uma boa história. A história pode ser verdadeira ou inventada, tipo uma história sobre uma biblioteca sofrendo a ameaça de ladrões… Esse é um dos grandes segredos da Bíblia, por exemplo: em vez de sair ditando regras, ela conta essas regras por meio de histórias (as famosas parábolas).

    Mas muitas vezes contar histórias não basta. Existe mais um segredinho sobre a nossa bibliotecária: ela prefere ver filmes a ler livros. Ela se interessa muito mais por imagens do que por simples texto. Por isso, quando você estiver com dificuldade pra memorizar algo, pratique a visualização: associe imagens, ainda que inventadas.

    Recentemente, eu fiz um vídeo explicando uma técnica que reúne contar histórias e visualização de imagens: o Palácio da Memória.

    Agora conta pra mim: qual técnica você usa pra sua memória não te deixar na mão?

  • A Técnica Pomodoro Mudou A Minha Vida

    Você já ouviu falar nessa técnica? Se eu pudesse indicar apenas uma técnica para você, seria essa!

    Eu tinha muito problema para manter o foco nas minhas atividades. Estava escrevendo um texto e de repente, como num passe de mágica, tinha parado em algum vídeo no YouTube. Ou então estava lendo um livro e do nada me pegava fuçando algum portal de notícias. Obviamente, isso derrubava a minha produtividade, e fazia com que horas e horas de trabalho ou estudo rendessem muito pouco.

    Foi quando eu descobri a Técnica Pomodoro.

    A Técnica Pomodoro é uma técnica bem simples, criada pelo italiano Francesco Cirillo, e, pela sua simplicidade e eficácia, ganhou o mundo e ajudou milhões de pessoas a aumentar a produtividade e o foco no dia a dia. Quando eu comecei a aplicá-la, eu percebi que a minha produtividade se multiplicou, eu passei a ficar muito mais focado nas minhas atividades e comecei a ter mais tempo livre (como eu produzia mais, sobrava tempo).

    E por que se chama Técnica Pomodoro? Porque tudo de que você vai precisar é um timer de cozinha, e o Francesco, como bom italiano, tinha um timer em formato de tomate (em italiano, pomodoro). Se você não tiver um timer, você pode usar o alarme do seu celular; só cuidado pra que ele não te distraia! Coloque-o no modo avião, desligue as notificações… Pra não correr o risco, eu recomendo que você use o timer disponível em www.timeronline.com.br.

    Passo a passo

    1. Escolha a atividade a ser desenvolvida. Pode ser ler, escrever, estudar, ver uma vídeo-aula, qualquer coisa.
    2. Pegue o seu timer e o programe para tocar daqui a 25 minutos.
    3. Nesses 25 minutos, você vai estar 100% FOCADO(A) na atividade que escolheu! Está terminantemente proibido fazer qualquer outra coisa. Nem pensar em tocar o celular!
    4. Se você sentir vontade de fazer outra coisa, anote o que você sentiu vontade de fazer em uma folha de papel ou no próprio livro/caderno em que você está estudando.
    5. Quando o alarme soar, faça 5 minutos de intervalo. Aproveite pra beber água, alongar-se, ir ao banheiro. Nesses 5 minutos tá liberado fazer qualquer coisa. A minha sugestão: faça aquilo que você anotou no passo 4, se possível. Mas por não mais do que cinco minutos (pode usar o próprio timer pra contar).
    6. Terminados os 5 minutos, volte para o passo 2.
    7. Repita o processo por 4 vezes.

    Parabéns, você acabou de realizar 1h40 de estudo focado! É hora de se dar uma recompensa, como um pedaço de chocolate, 20 minutos de TV/Netflix, ou mesmo 40 polichinelos.

    É importante fazer um intervalo mais longo (o ideal é não passar de meia hora) a cada 4 ciclos (ou 2 horas), para evitar o cansaço mental e a redução do foco. Ao fim do intervalo, pode repetir o processo por mais 4 ciclos.

    Com o tempo e a prática, é possível que você comece a contar o seu tempo produtivo em “Pomodoros”, e não mais em horas. É uma medida legal pra ter uma real noção de quanto tempo você está passando focado(a) nos seus objetivos.

    Foco no processo

    A técnica Pomodoro também é excelente pra você manter o foco no processo, e não no resultado. Por que isso é importante? Porque, se você começar a corrida pensando na linha de chegada, as suas chances de falhar aumentam muito! Se você já tem um planejamento bem feito sobre o que fazer, você já construiu o caminho, e a partir de agora o seu foco deve estar sempre no próximo passo.

    Isso pode ser difícil se, assim como eu, você é uma pessoa orientada para resultados. Nós tendemos a ficar obcecados com a tarefa até terminar, o que leva ao cansaço mental, à perda de foco e, pior ainda, à procrastinação (“se só tenho um pouquinho de tempo, nem vale a pena começar agora”).

    Gostou? Então aproveite e faça seu primeiro Pomodoro!

  • E se nada der certo?

    Ontem ouvi o episódio do “Bom dia, Internet!”, podcast do meu amigo Pedro Lobato com o tema “e se nada der certo?”. O motivo do tema foi um evento temático ocorrido numa escola do interior do Rio Grande do Sul dia desses, em que alunos do último ano do ensino médio deveriam ir “fantasiados” como um profissional de alguma área em que poderiam trabalhar caso não fossem aprovados no vestibular. Os alunos foram vestidos de vendedor ambulante, atendente do McDonalds, gari, pedreiro, e outras profissões de baixa qualificação e remuneração.

    Obviamente, com a notícia, choveram críticas à iniciativa da escola, em especial porque aparentemente havia ali uma grande manifestação de preconceito e desdém com essas profissões. A iniciativa foi criticada pela maioria dos meios de comunicação (e pelas pessoas que interagiram com a notícia, no já famoso “tribunal das redes sociais”).

    Foi nesse contexto que eu ouvi o podcast, que o Pedro apresenta com mais um amigo e que contou com a participação de um convidado, todos na faixa dos 20 e poucos anos. O Pedro é advogado, trabalha na área, mas não esconde de ninguém que não gosta da profissão; o negócio dele é produção de conteúdo, e aí entra a rede de podcasts que ele está desenvolvendo, a Arquivos Secretos Radio Station (www.asradiostation.com.br). O Guilherme, que apresenta o programa com ele, é publicitário e trabalha na área, mas também desenvolve outras atividades paralelas. E o convidado, Lucas, é engenheiro civil de formação, mas praticamente nunca trabalhou na área (ele inclusive relata a história da única obra que ele “tocou”), e hoje é youtuber, DJ e bartender numa casa noturna. Cada um compartilhou a sua história, as suas ambições quando mais jovem, e a aparente insatisfação com o atual estágio de vida em que estão; resumindo, soltaram um unânime “acho que minha vida não tá dando certo”.

    Eu (quem me conhece sabe) também sou um advogado que trabalha na área mas não tem o menor interesse em seguir na profissão, e também poderia dizer que, no momento, minha vida “não tá dando certo”. Eu não vejo dessa forma, e entendo que isso é só uma fase de recuperação e aprendizado, mas é fato que as coisas não aconteceram da forma como eu desejava nos últimos anos.

    Isso tudo me colocou pra refletir sobre algumas coisas:

    1) O QUE A ESCOLA FEZ É EXTREMAMENTE IMPORTANTE, E DEVERIA SER OBRIGATÓRIO EM TODAS AS ESCOLAS

    O Tim Ferriss (escritor, empreendedor, investidor e apresentador do qual eu sou fã) chama isso de fear setting (em tradução livre: configuração do medo). Basicamente, é traçar o pior cenário possível, ou seja, tentar imaginar exatamente o tal do “e se nada der certo?”. Isso é importantíssimo! Em geral, vejo que as pessoas só pensam em traçar os seus sonhos, o cenário ideal, como vai ser a vida se tudo der certo; ninguém traça os seus pesadelos, o que vai acontecer se tudo der errado.

    Sun Tzu, em “A Arte da Guerra”, disse: “Conheces teu inimigo e conhece-te a ti mesmo; se tiveres cem combates a travar, cem vezes serás vitorioso. Se ignoras teu inimigo e conheces a ti mesmo, tuas chances de perder e de ganhar serão idênticas. Se ignoras ao mesmo tempo teu inimigo e a ti mesmo, só contarás teus combates por tuas derrotas”. Quem nunca parou pra pensar no que fazer quando as coisas derem errado (e, em maior ou menor medida, elas sempre dão em algum momento) é pego desprevenido, corre o risco de se desesperar e de entrar numa espiral negativa.

    Pra citar mais um filósofo, “todo mundo tem um plano até levar o primeiro soco na cara” (Mike Tyson).

    Deixo aqui o link pra apresentação do Tim Ferriss no TED, explicando direitinho o fear setting: https://www.ted.com/…/tim_ferriss_why_you_should_define…

    2) PASSAR NO VESTIBULAR, FAZER UMA FACULDADE, CONSEGUIR UM EMPREGO… NADA DISSO É “DAR CERTO”!

    A nossa comunicação, o nosso acesso à informação, os nossos meios de transporte, a nossa expectativa de vida… tudo isso mudou radicalmente nos últimos 200 anos. Nosso ensino, por outro lado, continua praticamente igual! Esse modelo em que uma criança é posta por 15 anos sentada em uma sala de aula, como se o seu cérebro fosse um balde vazio a ser preenchido pelo conhecimento do professor, pra quando tiver 20 e poucos anos ser jogada ao mundo com um diploma e um “se vira!” obviamente não funciona! Não é à toa que o número de pessoas com diversos distúrbios mentais (como TDAH e depressão, dentre outros) vem crescendo exponencialmente nos últimos anos. Pior do que isso: habilidades fundamentais, como criatividade, comunicação, associação de conhecimentos, identificação de padrões, e mesmo o pensamento analítico não estão sendo desenvolvidas! É isso que leva um dos alunos a se “fantasiar” de vendedor: ele simplesmente não sabe que a habilidade de venda é uma das mais importantes e valorizadas no mercado de trabalho, e que os grandes gênios da nossa era foram ou são todos, acima de tudo, excelentes vendedores (pense no Steve Jobs).

    Além disso, existem DIVERSAS profissões que simplesmente não precisam de uma faculdade pra serem exercidas. Mas (talvez exatamente por isso) nós nunca ouvimos falar delas na escola, e simplesmente não nos foi dada essa opção. Além disso, um “teste vocacional” nunca vai indicar que uma pessoa deve ser tatuador, humorista, ator, vendedor, piloto, empreendedor, atleta… Repare: são algumas das profissões com a possibilidade de melhores remunerações! Com sorte, a pessoa que é vocacionada acaba “tropeçando” nessas atividades ao longo da vida, e consegue encontrar o senso de satisfação profissional que a esmagadora maioria das pessoas com formação superior não consegue.

    3) CADA VEZ MAIS O “ESPECIALISTA” ESTÁ PERDENDO ESPAÇO

    Quem desenvolve uma e só uma habilidade está cada vez mais fadado ao fracasso e à insatisfação profissional. Se uma pessoa só sabe realizar uma atividade, ela tem dois concorrentes muito mais competentes do que ela: um robô e quem sabe realizar duas ou mais atividades. Muito mais importante é desenvolver algumas habilidades genéricas (também chamadas “meta-habilidades”), como aquelas mencionadas no tópico anterior, que podem ser aplicadas em várias atividades. Diante disso, o ensino superior no Brasil é uma máquina de produzir fracassos e frustrações: coloque adolescentes pra escolher se especializar em uma atividade, seguindo um currículo extremamente rígido e com quase nenhuma possibilidade de mudar de rumo, e você vai ter “vintões”, “trintões” e “quarentões” frustrados, infelizes e improdutivos.

    Quem ganha é a indústria farmacêutica, que é presenteada com milhões de clientes para os seus remédios contra ansiedade, depressão, distúrbios do sono etc.

    4) O QUE A ESCOLA FEZ É IMPORTANTÍSSIMO. O PROBLEMA É COMO A ESCOLA FEZ…

    A ideia de associar não passar no vestibular com fracasso, e, pior ainda, associar o fracasso com determinadas profissões vitais pro funcionamento da sociedade, cria naquela comunidade de alunos um inevitável sentimento de superioridade em relação a quem exerce essas profissões. Pior: cria nesses adolescentes o sentimento de que eles têm direito a determinados privilégios, prerrogativas ou tratamento especial que aquelas outras pessoas não têm (o que os americanos chamam de “sense of entitlement”). Ou seja, como eu tenho um diploma superior, eu devo me sentir no direito de ter mais coisas, experiências e satisfação pessoal e profissional do que aqueles “cidadãos de segunda classe”.

    Como uma vez eu ouvi na minha faculdade, “não dá pra comparar uma Coca-Cola com um mendigo, a Coca vale bem mais”; ou, como eu ouvi meses atrás, “eu gosto mais de cachorros do que de humanos”. Ambas as frases ditas por pessoas com formação superior em uma universidade pública (ou seja, que passaram no vestibular e “deram certo”). Uma sociedade em que coisas são mais importantes do que pessoas está fadada a ser pra sempre pobre…

    tl;dr:

    A ideia do evento “se nada der certo” não tem nada de errado; pelo contrário, deveria ser obrigatória em todas as escolas. Mas, em vez de ser usada pra aterrorizar vestibulandos com a possibilidade de não passar no vestibular, deveria ser uma oportunidade para que esses adolescentes, no fim da sua formação escolar, refletissem não só sobre o que querem da vida, mas também sobre o que não querem, e também pra reconhecer o valor de profissões que não demandam formação superior. A formação escolar de hoje não prepara ninguém “pra vida”, e ninguém precisa de faculdade pra se realizar profissionalmente; pelo contrário, essa “hiperespecialização” do ensino superior pode ser bem mais prejudicial do que benéfica.

  • “Se eu morresse amanhã, eu morreria feliz”

    Quantos de nós podem dizer isso? Quantos de nós estamos satisfeitos com as nossas vidas, e, principalmente, com o que estamos fazendo com aquilo que nossas vidas nos ofereceram?

    A maioria de nós acorda todos os dias como eu acordei hoje, com preguiça de sair da cama, apertando o botão “soneca” duas vezes. Sem vontade de atacar os problemas, de criar, de conversar com gente, de comer, de se exercitar, de curtir as melhores coisas da vida (que geralmente são de graça) e as segundas melhores (que geralmente são bem caras).

    Até que um dia a gente acorda e a primeira coisa que a gente descobre é que o avião da Chape caiu. Que 75 pessoas morreram. Que entre essas 75 pessoas estavam jornalistas, quase todos os jogadores do time, toda a comissão técnica, dirigentes, além de quase toda a tripulação…

    Aí, quando a gente toma esse soco na boca do estômago, a gente passa o dia inteiro vendo notícias sobre como acabou a vida dessas pessoas, sobre os detalhes do acidente, sobre as histórias de quem embarcou e de quem não embarcou. A gente lembra que o treinador era o Caio Jr., que foi treinador do Paraná Clube há 10 anos, e que quase toda a comissão técnica era de Curitiba. A gente passa o dia inteiro triste, sem foco, lamentando, pensando em como podemos ajudar a Chape, a família dos mortos, os sobreviventes… sei lá, todo mundo que tá sofrendo! A gente lembra que tem uma amiga de Chapecó, pergunta se tinha alguém próximo dela no voo, oferece um ombro amigo. A gente passa o dia pensando sobre a finitude da vida, sobre o gol que o Bruno Rangel fez no Paraná em 2013, sobre a defesa do Danilo na semana passada, sobre o Caio Jr. comemorando a classificação pra Libertadores em 2006, sobre os planos de ir à final na semana que vem.

    E aí, quando a gente nem sabe mais o que pensar, o que fazer, que conclusões tirar, a gente ouve aquela frase do começo do texto. E lembra que o nosso amanhã não tá garantido, assim como o dele não tava. E que ele morreu feliz. E nós, estamos esperando o que pra poder dizer o mesmo?