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  • A falta de cuidado dos clubes brasileiros com os seus jogadores

    Por que os clubes de futebol brasileiros cuidam tão mal dos seus principais ativos?

    Existe um mito muito popular no mundo do futebol: o de que os jogadores têm tudo “do bom e do melhor” pra exercer sua profissão. Não raro, surge nos “papos de bar” a frase: “eles só comem, dormem e jogam”.

    OK, não sejamos hipócritas: houve muitos avanços nos últimos anos. Nos últimos 20 anos, vimos os cuidados com os jogadores ganharem reforços de peso em áreas como nutrição e fisiologia. Nos últimos 10 anos, a análise de desempenho e a ciência de dados (áreas em que eu trabalho) também ganharam espaço. Mas o caminho ainda é muito longo, e áreas como psicologia e assistência social simplesmente não decolam; talvez por não saberem falar “boleirês”, esse(a)s profissionais têm muita dificuldade de conseguir mostrar seu real valor e fazer um trabalho efetivo com os atletas, em especial no futebol profissional.

    Na base, devido às exigências pra obtenção do certificado de clube formador, a estrutura de apoio extracampo costuma ser maior. Todos os clubes formadores são obrigados a dar assistência psicológica e pedagógica aos atletas, além de alojamentos dignos e refeições planejadas por nutricionista. Mas a realidade é que a maior parte dos clubes provê essa estrutura não para de fato cuidar do jogador, e sim pra “cumprir a lei” e obter um ganho econômico com isso (os mecanismos de solidariedade e compensação por treinamento).

    Ironicamente, no futebol profissional os atletas estão ainda mais desassistidos nos assuntos extracampo. No que diz respeito direto a performance, como os setores técnico e de saúde, a estrutura costuma ser “de primeiro mundo”. Mas, para tudo aquilo que não diz respeito a “campo e bola”, a assistência costuma ser precária mesmo em clubes da primeira divisão.

    Todos sabemos que a rotina dos jogadores de futebol e membros de comissão técnica é bastante heterodoxa. Além da pressão da torcida e da mídia, e da rotina de concentrações e viagens constantes, ainda é necessário que a adaptação a uma nova cidade ou país seja a mais rápida e fácil possível. Tudo isso em um contexto que demanda que apresentem performance esportiva de excelência toda semana, criando um cenário desafiador e cheio de riscos.

    Atividades simples como ir ao banco, escolher uma casa pra alugar, ou uma escola para matricular os filhos, podem se tornar distrações imensas e demorar muito mais tempo pra serem resolvidas. Isso sem falar nas famosas “dificuldades de adaptação”, seja por uma língua ou cultura diferente, seja por não haver rotinas de onboarding (recepção e integração) bem definidas.

    Nesse sentido, faz falta um setor ou ao menos um profissional dentro do departamento de futebol especializado na gestão de projetos relacionados aos atletas. Algo que é bastante comum em vários clubes da elite mundial, mas que ainda é a exceção no Brasil. Na Inglaterra, esse profissional é chamado de liaison officer (“gestor de ligação”, em tradução livre), e está presente em todos os clubes de primeira e segunda divisão. Em outros lugares, ele é chamado de player care manager (gerente de cuidados com o jogador), um nome autoexplicativo.

    O principal objetivo desse setor é dar as condições para que atletas e comissão técnica estejam o maior tempo possível disponíveis e focados nas atividades do dia a dia da equipe. Isso pode se dar de diversas maneiras, seja com os profissionais desse setor assumindo tarefas de apoio prático aos atletas e membros de comissão técnica e às suas famílias, seja gerenciando projetos e processos multidisciplinares de apoio ao atleta. Também é papel desse profissional auxiliar nas eventuais barreiras linguísticas, quer de forma eventual, quer de forma permanente, sugerindo e indicando um tradutor.

    Alguns exemplos de projetos que são geridos pelo setor de player care:

    Onboarding dos atletas e comissão. Desde os trâmites burocráticos necessários para a regularização do atleta ou treinador (como o fornecimento e obtenção de documentos, registros, vistos e autorização de trabalho) até o seu acolhimento dentro do clube (com fornecimento de detalhes sobre a cultura, história, benefícios e organograma).

    – Aparições públicas e participação em campanhas publicitárias: o setor de player care fica responsável por intermediar a relação entre as áreas de negócios do clube e os atletas e membros de comissão técnica, facilitando a conciliação de agendas e o alinhamento de expectativas para a realização de ações, como a presença em veículos de imprensa, participação em ações publicitárias e de relações públicas, e qualquer outro tipo de aparição como representante do clube.

    – Integração cultural: em especial com a presença cada vez maior de jogadores e treinadores estrangeiros, é necessário um maior cuidado para auxiliar na sua adaptação e das suas famílias à cultura local, desde sanar dúvidas pontuais sobre comportamento e costumes até fornecer informações sobre educação, religião e alimentação. Isso também se aplica na integração da família ao ambiente do clube, desde questões relacionadas ao vínculo de trabalho (ex.: cadastro de dependentes no plano de saúde) a questões como a recepção em dia de jogo e coordenação de ações especiais envolvendo a família (Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das Crianças).

    – Assistência Pessoal: A rotina dos atletas e comissão técnica muitas vezes impede ou retarda a solução de pequenos problemas práticos do dia-a-dia. Atividades como encontrar moradia, escolas para filhos, templos religiosos, e locais para alimentação e lazer, abertura de conta bancária, dentre outras, podem se tornar uma distração desnecessária e refletir na performance. O Player Care Manager pode desenvolver as rotinas e atuar como um concierge nessas questões cotidianas, facilitando a adaptação do profissional e permitindo que ele foque nas atividades do dia a dia da equipe.

    – Atletas emprestados: Ainda que o setor de análise de desempenho e/ou mercado possa manter um controle das atividades do atleta emprestado em campo, em geral há pouco acompanhamento tanto das atividades extracampo dos atletas emprestados quanto do onboarding desse atleta no regresso ao clube. O Player Care Manager pode servir como ponto focal para os atletas emprestados e manter uma base de dados atualizada sobre a sua situação.

    Mas qual o perfil do profissional que trabalha no setor de player care? Assim como em outras áreas do futebol, a formação importa menos do que as características comportamentais e a ética de trabalho, até porque o profissional que ocupa essa posição precisa ter um conjunto muito específico de habilidades.

    Em termos de comunicação, precisa saber falar tanto a “linguagem da bola” quanto a linguagem corporativa. Também é importante que seja capaz de se comunicar com desenvoltura, tanto de forma oral quanto escrita, e no maior número de idiomas possível.

    É preciso também ter a mesma disposição dos profissionais do departamento de futebol, para poder se dedicar ao trabalho em dias e horários alternativos. Ao mesmo tempo, boa parte do trabalho é feita de forma presencial e durante o horário “comercial”.

    Também é necessário que tenha experiência multicultural e, ao mesmo tempo, conheça bem a cidade e o país, para agir como um facilitador na adaptação de pessoas vindas de outras cidades e países.

    Obviamente, pra atrair um profissional capacitado, é preciso oferecer uma remuneração condizente. Esse talvez seja o ponto mais crítico: em geral o futebol paga pouco e exige muito de quem está fora das quatro linhas. Como eu costumo dizer, “vai custar menos do que o seu terceiro lateral”. Infelizmente, ainda é preciso mostrar um enorme retorno sobre o investimento pra convencer um dirigente. Pois bem, vamos tentar:

    Ainda que o retorno sobre o investimento possa parecer intangível, algumas ações podem dar uma ideia da importância desse tipo de operação. Considerando o custo por partida de um atleta ou treinador de um clube de Série B, é razoável supor que, caso a ação do Player Care Manager seja determinante para que atleta ou treinador estejam disponíveis em 2 (duas) partidas adicionais durante o ano, o investimento já daria um retorno positivo.

    Por outro lado, é possível encontrar alguns exemplos de riscos que o Player Care Manager pode ajudar a mitigar ou eliminar: desde a adaptação do jogador, passando por dificuldades com a língua, assistência familiar, xenofobia e eventuais danos à imagem do clube, o profissional pode monitorar e prevenir esses riscos e gerar um grande retorno indireto ao clube.

    A criação do setor de Player Care dentro dos clubes de elite parece ser necessária e pode se tornar um diferencial na hora de atrair os melhores talentos. Depois de fazer grandes investimentos para contratar, o clube pode e deve oferecer as melhores condições para que os atletas e membros da comissão técnica possam se preocupar com aquilo que mais importa: as vitórias em campo.

    Qual a sua opinião?

  • Choque de Cultura: a oportunidadedo Futebol Feminino

    Tirei esta foto logo que cheguei ao Morumbi no último domingo para o amistoso da seleção brasileira feminina contra a seleção japonesa. A imagem é poderosa: de um lado, uma longa fila de mulheres, e do outro a entrada masculina praticamente livre.

    Desde a minha primeira visita a um estádio de futebol aos 5 anos, até os dias atuais, com 34 anos de idade, nunca havia presenciado algo assim. O estádio de futebol sempre foi um ambiente de maioria masculina, com aquele cheiro de suor, cerveja e (sim) urina; não era agradável. Como a própria torcida do São Paulo diz, o estádio era “raiz, hostil e ensurdecedor”.

    Essa cena me levou a uma reflexão sobre o potencial do futebol feminino para criar uma nova cultura de consumo do futebol.

    Junto com a cultura do futebol masculino, vêm a violência, o machismo, a hostilidade, a falta de respeito… Isso sempre tornou o estádio um ambiente inseguro para as mulheres. Além do assédio e das ofensas, o risco de “sobrar pra elas” em alguma briga com certeza afastou muitas mulheres dos estádios ao longo dos anos.

    Além disso, a infraestrutura costuma deixar a desejar, com banheiros precários, opções de comida de baixa qualidade e visibilidade comprometida. As mulheres tendem a ser mais exigentes quando se trata da qualidade da experiência, e pra atendê-las é necessário fazer o (mínimo?) necessário pra oferecer uma experiência que lhes dê vontade de voltar.

    Até agora eu falei daquilo que o futebol masculino faz bem e o futebol feminino pode fazer melhor, mas também tem o outro lado. Durante a partida, observei algumas mulheres que não pareciam compreender completamente o que estava acontecendo em campo, e também fez falta ouvir uma torcida “que canta e vibra”, como dizem os palmeirenses. Quem faz futebol feminino deve (sem ser condescendente, claro) aproveitar todas as oportunidades possíveis pra educar e envolver um público que ainda está se familiarizando com o consumo do esporte no estádio, sem comentaristas ou gerador de caracteres. No meu caso, quem fez isso foram meu pai e o rádio; pra esse novo público, quem vai ser?

    Apesar dos desafios, enxergo uma imensa oportunidade para o futebol feminino. Ele pode aprender com o futebol masculino, aproveitando a paixão, o engajamento e a capacidade de criar uma comunidade de fãs dedicados.

    Acredito que o futebol feminino tem o potencial de crescer, atrair mais público aos estádios e conquistar uma audiência fiel. Se souber incorporar o melhor do futebol masculino, ao mesmo tempo que promove uma cultura de respeito e inclusão, o futuro do futebol feminino é promissor.

    Essa experiência me deixou esperançoso. O futebol feminino tem a chance de construir uma nova cultura de consumo, aproveitando o que há de melhor no esporte, mas evitando cometer os mesmos erros. Dessa forma, tenho certeza de que o futebol feminino tem tudo para crescer, levar cada vez mais público nos estádios, trazer cada vez mais audiência, trazer cada vez mais interesse e dominar cada vez mais o tempo e a atenção dos fãs de futebol e de esporte em geral.

  • Liderança no futebol – Comportamentos de Liderança

    No primeiro texto desta série sobre liderança no futebol, sugerimos uma resposta para a pergunta “o que é liderança?”, vimos quais os níveis de abstração em que o fenômeno de liderança acontece, e que se trata de um fenômeno complexo ou uma função multivariável, ou seja, é influenciado por múltiplos fatores, notadamente os líderes, os liderados e as situações. Também procuramos defender a importância de estudar liderança para ser, selecionar e formar melhores líderes, ainda que esse fenômeno seja, ao mesmo tempo, ciência e arte, e que, portanto, apenas o estudo não seja suficiente nem imprescindível para o exercício efetivo da liderança.

    Neste texto, o objetivo é dar mais sentido prático ao estudo da liderança, a partir da apresentação dos comportamentos de liderança, tendo como paradigma as teorias comportamentais de liderança. Ao fim deste texto, espera-se que o leitor tenha condição de identificar os principais conjuntos e subconjuntos de comportamentos de liderança.

    As teorias comportamentais de liderança formam o primeiro grande corpo estruturado de estudos da liderança. Surgem a partir da metade do século XX em oposição às teorias que procuravam explicar o fenômeno da liderança exclusivamente a partir de traços de personalidade ou mesmo físicos dos líderes. Uma meta-análise dos estudos sobre liderança existentes naquele momento, conduzida por Stogdill[1], concluiu que esses estudos falhavam em identificar padrões de personalidade ou traços físicos que fossem capazes de, isoladamente, indicar potencial de liderança.

    A partir daquele momento, houve uma transição do foco nas personalidades para o foco nos comportamentos, ou, em outras palavras, o foco deixou de ser em quem o líder é para no que o líder faz[2]. Pesquisadores da Universidade de Ohio State, liderados por Stogdill, e da Universidade de Michigan conduziram uma série de estudos independentes sobre comportamentos de liderança, e chegaram a conclusões muito similares. A principal dessas conclusões é que era possível identificar duas grandes categorias de comportamentos de liderança[3], que serviam para classificar esses comportamentos e facilitar o seu estudo. Havia distinções na nomenclatura entre um grupo e o outro, mas os dois estavam se referindo essencialmente à mesma coisa: essas categorias, em ambos os casos, dividiam os comportamentos entre orientados a tarefas ou orientados a relacionamentos.

    A principal distinção entre as conclusões de uma corrente e da outra era que, enquanto para os pesquisadores da Universidade de Michigan a relação entre essas duas categorias era linear ou unidimensional, ou seja, ou o líder tinha comportamentos orientados a tarefas ou tinha comportamentos orientados a relacionamentos, para o grupo da Universidade de Ohio State essa relação era matricial ou bidimensional, ou seja, o líder poderia, ao mesmo tempo, ter comportamentos orientados a tarefas e a relacionamentos. Em breve essa distinção ficará mais clara.

    A corrente da Universidade de Ohio State prevaleceu, e foi aperfeiçoada por outros dois pesquisadores independentes, Robert R. Blake e Jane S. Mouton, que desenvolveram nos anos 1960 a Grade Gerencial, atualmente conhecida como Grade de Liderança. A partir da aplicação de um questionário aos liderados, é atribuída uma “nota” ao líder referente ao seu domínio dos comportamentos de liderança orientados a tarefas e a resultados; com base nessa nota, a Grade de Liderança permite representar graficamente o desempenho do líder e, consequentemente, indicar as suas qualidades e pontos de melhoria:

    Fonte: NORTHOUSE, Ob. cit., p. 76.

    Ao inserir em um eixo a avaliação dos comportamentos de liderança orientados a tarefas (ou resultados, como descrito na imagem acima) e no outro eixo os orientados a relacionamentos (ou pessoas, como descrito na imagem), a Grade de Liderança permitiu que os tomadores de decisão e o próprio líder identificassem com mais clareza quais comportamentos devem se preocupar em manter e quais devem se preocupar em modificar ou desenvolver. Também é possível usar determinados estereótipos, como os descritos na imagem, para classificar e qualificar o líder de acordo com a sua pontuação no questionário.

    Posteriormente, a partir dos anos 1990, emergiu uma nova categoria de comportamentos, chamada de comportamentos orientados à mudança[4]. Os comportamentos enquadrados nessa categoria seriam distintos das outras duas, e incluiriam comportamentos do líder como criar visões, aceitar novas ideias, tomar decisões rápidas, incentivar a cooperação, não ser excessivamente cauteloso, e não focar excessivamente no que foi planejado[5]. A partir desse momento, a abordagem dos comportamentos de liderança passou a ser tridimensional[6], considerando os comportamentos orientados a tarefas, relacionamentos e mudanças.

    Cada categoria tem um propósito primário diferente, e todas elas são relevantes para uma liderança eficaz[7].

    O comportamento orientado a tarefas tem o propósito primário de cumprir a tarefa de forma eficiente e confiável. O comportamento orientado a relacionamentos tem o propósito primário de aumentar a confiança mútua, a cooperação, a satisfação com o trabalho e a identificação com a organização. Já o comportamento orientado a mudanças tem o propósito primário de compreender o ambiente, encontrar formas inovadoras de se adaptar a ele, e implementar grandes mudanças nas estratégias, produtos ou processos[8].

    CATEGORIAS DE COMPORTAMENTOS NA PRÁTICA

    Falar em comportamentos orientados para relacionamentos, tarefas e mudança ainda pode soar muito abstrato. Afinal de contas, que comportamentos seriam esses?

    Com a clareza trazida por essa primeira classificação, os pesquisadores puderam desenvolver uma subclassificação, que divide esses três grandes grupos de comportamentos em subgrupos, permitindo dar maior concretude e aplicação prática ao conhecimento. São esses grupos que serão apresentados a partir de agora.

    COMPORTAMENTOS ORIENTADOS A TAREFAS

    Os comportamentos orientados a tarefas podem ser classificados em três subgrupos: i) planejamento de atividades, ii) definição de atividades e expectativas e iii) monitoramento de desempenho.

    Os comportamentos de planejamento de atividades são fundamentais para uma execução eficaz das tarefas. O papel do líder nesses casos é ter um olhar estratégico e planejar da melhor forma possível as tarefas que serão distribuídas entre os liderados. A palavra-chave aqui é organização. Ao contrário do que o senso comum pode indicar, as tarefas de planejamento não se limitam ao início do trabalho, e devem ser executadas durante todo o projeto. Num clube de futebol, existem alguns momentos em que o planejamento de atividades ganha mais protagonismo, como na intertemporada e no período entre competições, mas o dia a dia de um clube deve ser permeado por atividades de planejamento, seja no nível estratégico, como a geração de novas receitas ou a melhoria da qualidade do elenco, seja no nível operacional, como o planejamento de partidas e viagens.

    Feito o planejamento, é necessário passar à etapa de definição de atividades e expectativas. A palavra-chave aqui é clareza. Nesses casos, o líder precisa comunicar de forma clara e objetiva quais serão as atividades desenvolvidas por cada um dos liderados e qual é o desempenho esperado em cada uma dessas atividades. Nessa fase surgem e são comunicados os indicadores de desempenho, que serão responsáveis por informar e permitir o monitoramento do desempenho. Exemplos de comportamentos como este num clube de futebol: meta de pontos/colocação numa competição, metas de número de jogadores da base utilizados, definição e comunicação das funções que os atletas devem desempenhar durante um determinado jogo.

    O último subgrupo de comportamentos orientados a tarefas é o monitoramento de desempenho. Aqui, a palavra-chave é informação. Esses comportamentos têm como característica a coleta de informações, a sua avaliação de forma quantitativa e qualitativa, e os ciclos de feedback e ajuda com os liderados. É uma etapa mais “mão na massa”, pois o líder tem a oportunidade de alinhar e melhorar o desempenho dos seus liderados de acordo com os objetivos da equipe. No futebol, em especial nas atividades relacionadas diretamente com o jogo, ganhou destaque nos últimos anos a análise de desempenho, cujo objetivo é precisamente coletar e classificar dados e informações quantitativas e qualitativas sobre o desempenho técnico, tático e físico dos jogadores durante os jogos e treinos; os relatórios de análise, por sua vez, são utilizados para orientar as sessões de treinamento e as instruções do treinador antes e durante os jogos.

    COMPORTAMENTOS ORIENTADOS A RELACIONAMENTOS

    Os comportamentos orientados a relacionamentos ganharam muita importância nas últimas décadas, e dentro da indústria esportiva (mais especificamente do futebol) conversam diretamente com aquela que é considerada a dimensão menos dominada – e por isso com maior potencial de crescimento – do desempenho esportivo: a psicológica ou emocional. A precariedade dos comportamentos orientados a relacionamentos no ambiente do futebol é notória, e isso ficará claro para o leitor conforme os subgrupos forem apresentados.

    Assim como no conjunto de comportamentos orientados a tarefas, os comportamentos orientados a relacionamentos também podem ser classificados em três subgrupos: i) suporte emocional, ii) mentoria/coaching e iii) reconhecimento.

    Os comportamentos de suporte emocional são aqueles por meio dos quais o líder e o liderado estabelecem conexão[9]. São comportamentos como a atenção, a consideração e a aceitação, cujo objetivo, além de gerar lealdade e camaradagem entre líder e liderado, é criar um ambiente de segurança dentro do grupo ou organização. Esse ambiente de segurança é fundamental para aumentar a tolerância a riscos, despertando a criatividade e inventividade; num momento em que se acusam os líderes (em especial os treinadores) de produzir um futebol robotizado e automatizado, criar esse ambiente de segurança por meio do suporte emocional pode ser um diferencial competitivo relevante. Pela própria incompreensão ou pela falta de palavras para exprimir os comportamentos dessa categoria, vê-se a dificuldade dos atores (em especial jogadores) de exprimir o que querem dizer com expressões como “grupo fechado”, “família”, dentre outras que são usadas para descrever elencos de futebol nos quais há alta ocorrência do suporte emocional.

    Os comportamentos de mentoria/coaching são aqueles pelos quais o líder assume a responsabilidade de, muitas vezes de forma individualizada, transmitir ao liderado conhecimentos ou práticas que possam melhorar o seu desempenho. Esses comportamentos têm a capacidade de gerar a fidelidade entre líder e liderados, pois criam uma conexão que muitas vezes transcende o ambiente de trabalho[10]. No futebol, é muito comum se evocar a figura do “treinador-paizão”, aquele treinador que tem a habilidade para exercer a função de mentor com os jogadores e ajudá-los a superar dificuldades temporárias ou crônicas, no futebol ou em outros aspectos da vida. Cabe um aprofundamento da análise, e não é o objetivo deste texto, mas uma hipótese que pode explicar por que tantos ex-atletas têm sucesso na função de treinador mesmo sem instrução formal é a sua capacidade de exercer esse papel de mentores dos atletas.

    Por fim, os comportamentos de reconhecimento parecem, dentre os orientados a relacionamentos, os mais incorporados à cultura esportiva e ao futebol em especial. O esporte naturalmente invoca alguns desses comportamentos, como as cerimônias formais de reconhecimento e agradecimento, as premiações, e mesmo os elogios diretos. Entretanto, é preciso haver um cuidado muito grande por parte do líder com o modo como esses comportamentos de reconhecimento são conduzidos, para evitar tanto a sua falta como o seu excesso, assim como evitar que, no processo de reconhecimento, sejam criados comportamentos tóxicos dentro do grupo e da organização. O reconhecimento deve ser, acima de tudo, justo, e alinhado com os objetivos coletivos.

    Um ponto extremamente importante sobre os comportamentos orientados a relacionamentos é que não só os líderes podem ser treinados para exercê-los como as pesquisas experimentais indicam que a melhoria nesses comportamentos implicou um aumento na satisfação dos subordinados e na produtividade[11]. Aparentemente, os clubes de futebol deveriam considerar a oferta de treinamentos aos seus líderes especialmente direcionados a aumentar a sua capacidade de adotar comportamentos dessa categoria.

    COMPORTAMENTOS ORIENTADOS A MUDANÇAS

    Último grande conjunto de comportamentos a ser identificado pelas pesquisas, os comportamentos orientados a mudanças ainda não apresentam uma taxonomia tão desenvolvida quanto a dos dois primeiros grupos. Isso significa que ainda não foram categorizados em subgrupos.

    Uma tentativa de organizar esses comportamentos é a seguinte: comportamentos de observação do ambiente, como a detecção de ameaças e oportunidades, o estudo da concorrência, e a interpretação de novos eventos que possam demandar a mudança; comportamentos de criatividade e inovação, por meio dos quais o líder estimula os liderados a “pensar fora da caixa” e tentar novas soluções para os problemas que se apresentam; e comportamentos de celebração da mudança, por meio dos quais o líder procura reforçar o aspecto positivo da implementação de mudanças.

    EFEITOS MULTIPLICATIVOS E DIFERENÇAS ENTRE INCIDENTES NEGATIVOS E POSITIVOS

    Uma característica importante dos comportamentos de liderança é que eles não têm um efeito aditivo, e sim multiplicativo. Isso significa que combinar comportamentos de diferentes categorias multiplica a efetividade da liderança. Um exemplo: quando um treinador oferece suporte emocional (relacionamentos) ao apresentar o relatório de análise de desempenho (tarefas) de um jogador, e ao mesmo tempo estimula que o jogador seja mais criativo em campo (mudanças), a efetividade da sua liderança é muito superior à que se esperaria caso ele apresentasse cada um desses comportamentos separadamente.

    Isso reforça o caráter multidimensional da liderança: o líder efetivo é aquele capaz de combinar diferentes comportamentos de liderança. Além disso, evidencia que pode ser mais importante o local e a forma do comportamento de liderança do que o comportamento em si[12].

    Por fim, o líder também precisa estar atento ao fato de que um comportamento negativo tem mais influência do que um comportamento positivo[13]. Portanto, antes de tentar ser um “bom líder”, talvez seja mais efetivo focar em abandonar os comportamentos do “mau líder”.

    PRÓXIMO PASSO: LIDERANÇA TRANSFORMACIONAL

    Neste texto, pudemos aprender sobre os comportamentos de liderança, a começar pela apresentação do paradigma dominante no estudo da liderança, o das teorias comportamentais de liderança. Na sequência, apresentamos os três conjuntos de comportamentos identificados nos fenômenos de liderança: os comportamentos de liderança orientados a tarefas, a relacionamentos e a mudanças. Por fim, foram apresentados os subconjuntos de comportamentos de liderança, mais concretamente visualizáveis na análise dos fenômenos de liderança.

    Apesar de ainda ser o paradigma dominante, as teorias comportamentais abordadas neste texto se mostraram limitadas para explicar o fenômeno da liderança. Isso porque oferecem uma abordagem transacional da liderança, em que os comportamentos dos líderes têm como foco obter algo em troca dos liderados. Essa abordagem se tornou insuficiente para compreender a liderança contemporânea, em especial com a identificação dos comportamentos de liderança orientados a mudança.

    Diante disso, nos últimos anos emergiu um novo paradigma de abordagem do fenômeno de liderança, chamado de liderança transformacional. Ao contrário da liderança transacional, a liderança transformacional enfoca a criação de uma conexão entre líder e liderados que aumenta os níveis de motivação e moralidade de ambos[14]. É sobre esse novo paradigma da liderança que falaremos no próximo texto. Até lá!


    [1] STOGDILL, Ralph M. Personal Factors Associated with Leadership: A Survey of the Literature, The Journal of Psychology, 25:1, 35-71, 1948.

    [2] NORTHOUSE, Peter G. Leadership: Theory and Practice, 7th ed. Sage Publications: 2015, p. 71.

    [3] Id., ibid.

    [4] Por todos, ver: EKVALL, G., & ARVONEN, J. (1991). Change-centered leadership: An extension of the two-dimensional model. Scandinavian Journal of Management, 7(1), 17–26.

    [5] YUKL, Gary. Leadership in Organizations. Prentice Hall: 2012, p. 68.

    [6] Id. Ibid.

    [7] Id., p. 69.

    [8] Id. Ibid.

    [9] Id., p. 76.

    [10] Id., p. 77.

    [11] Id., p. 62.

    [12] Id., p. 65.

    [13] Id. Ibid.

    [14] Id., p. 162.

  • Liderança no futebol: uma introdução

    A liderança é um fenômeno que emerge com frequência no ambiente do futebol. É comum que, nos esportes coletivos, a liderança seja cuidadosamente observada e exemplos de situações de liderança e de grandes líderes sejam exaustivamente listados e analisados. Vários artigos, livros, filmes e reportagens são produzidos todos os anos para dissecar as atitudes daqueles líderes que obtêm sucesso.

    No futebol, não é diferente, e algumas características culturais tornam isso ainda mais presente. Por exemplo, cada time é obrigado a nomear um líder, o capitão, e esse líder é devidamente identificado por uma braçadeira, de modo que todos os participantes e espectadores do jogo sabem quem ele é.

    Considerando a importância da liderança no futebol, parece conveniente analisar e estudar esse fenômeno, a fim de identificar e qualificar a sua função e procurar aumentar a probabilidade de sucesso dos times por meio de uma melhor liderança.

    Mas, para começar essa análise, é necessário tentar responder uma pergunta nada fácil: o que é liderança?

    O QUE É LIDERANÇA?

    Não existe um conceito “fechado” de liderança, que seja consensual entre todos que estudam esse fenômeno. Esse conceito é alvo de muitos debates, mesmo no meio acadêmico[1], a depender do enfoque que se dá e das premissas de que se parte. Para os fins do presente artigo, a opção é pelo seguinte conceito: a liderança é um fenômeno social complexo, que consiste no processo de influenciar pessoas para que elas atinjam seus objetivos[2].

    O conceito acima tem três “palavras-chave”: complexo, influenciar e objetivos. A liderança é complexa porque conta com uma série de fatores que interagem entre si e estão interligados. A influência é a característica chave que diferencia a liderança dos demais comportamentos: há, na liderança, a intenção deliberada de “indicar o caminho”, “alterar o curso”, agir no sentido de modificar o liderado. Mas não se trata de qualquer influência: a liderança é a influência que pretende auxiliar o liderado para que ele atinja os seus objetivos, ou seja, é colaborativa e auxiliar.

    NÍVEIS DE ABSTRAÇÃO DA LIDERANÇA

    Desse conceito, é possível inferir que a liderança não se limita a grupos e organizações. Na realidade, é possível identificar a liderança em quatro níveis de abstração. O primeiro deles é a liderança individual ou autoliderança, que consiste na capacidade de uma pessoa influenciar a si própria; nesse nível, a liderança se confunde muito com o autoconhecimento e com as características individuais e atitude geral da pessoa, já que é difícil dissociar e identificar de forma isolada atitudes típicas de liderança.

    O segundo nível de abstração é a liderança diádica ou interpessoal, que ocorre quando existem somente duas pessoas envolvidas no processo. Essa liderança é mais facilmente observável, e seria possível até mesmo dizer que em qualquer interação entre duas pessoas é possível emergir o fenômeno da liderança, considerando que em grande parte das interações entre pessoas há a intenção de alguma das duas partes de influenciar o comportamento da outra. Quando essa intenção de influência é colaborativa, no sentido de que a pessoa influenciada atinja seus objetivos, estamos diante de um evento de liderança. Nesse nível, ainda que a liderança possa ter apenas uma pista, ela tem duas vias: a relação líder-liderado pode acontecer em ambas as direções, e, dependendo do contexto, os papéis podem se alternar rapidamente, como numa conversa entre dois amigos ou colegas de equipe. Imagine uma conversa entre dois defensores para definir a marcação em uma cobrança de escanteio, por exemplo.

    O terceiro nível de abstração é a liderança de grupo. No ambiente do futebol, essa liderança é muito mais facilmente identificável, já que boa parte das interações mais importantes no futebol se dá nesse nível. O grupo se caracteriza por um conjunto de mais de duas pessoas que se relacionam diretamente umas com as outras; nesse nível, a liderança ganha muito em complexidade, considerando que há nas interações muitas “pistas” e “vias” de comunicação e interação, e o grupo pode ser tratado de maneira geral ou fragmentada. Imagine, por exemplo, uma situação em que o treinador explica o esquema tático que será adotado e, logo na sequência, passa a dar instruções específicas para o setor defensivo, enquanto um jogador de meio-campo instrui os atacantes sobre uma determinada movimentação na fase ofensiva. Nesse nível, começam a emergir os fenômenos estudados por campos como a psicologia social.

    O quarto e último nível são as organizações, que poderiam ser grosseiramente qualificadas como “grupos de grupos”. Nesse nível, não há necessariamente interações diretas entre todas as pessoas que a compõem, e isso impacta diretamente a quantidade e qualidade dos comportamentos de liderança. Como a relação entre líder e liderados não é necessariamente direta, “olho no olho”, esse nível de liderança impõe situações completamente diferentes daquela observada nos demais níveis, e isso impacta diretamente toda a análise. É possível imaginar, por exemplo, a posição de um presidente de clube, cujas ações e decisões impactam toda a organização, mesmo que muitos dos seus colaboradores nunca o tenham visto; a liderança que esse presidente exerce é, na maior parte, no nível organizacional.

    UM FENÔMENO COMPLEXO

    A liderança é um fenômeno complexo porque é uma função multivariável[3], ou seja, há múltiplas variáveis que a influenciam, as quais interagem umas com as outras e afetam o resultado. Essas variáveis podem ser classificadas em três conjuntos: os líderes, os liderados e as situações. A liderança ocorre quando é possível identificar variáveis pertencentes a esses três conjuntos.

    Fonte: HUGHES, 2011, p. 1.

    A complexidade da liderança emerge precisamente do fato de que essas variáveis interagem entre si de formas imprevisíveis e não-lineares, de modo que uma pequena alteração em uma delas pode causar um fenômeno de liderança completamente diverso. Existem, inclusive, escolas de estudo da liderança focadas em cada um desses conjuntos. Neste texto, visando preservar a complexidade do fenômeno da liderança, a abordagem escolhida será a comportamental, que não ”disseca” esses conjuntos, focando-se nos comportamentos de liderança de forma global, sem separar o papel dos líderes, liderados e situações no momento da análise.

    VALE A PENA ESTUDAR LIDERANÇA?

    Não é raro identificar, não só no senso comum mas também nos estudos acadêmicos, uma tendência de qualificar a liderança como um “dom”, no sentido de ser algo intrínseco do líder. “Fulano é um líder nato” é uma frase muito comum que retrata essa tendência. Mesmo no ambiente acadêmico, os estudos de liderança começaram com o objetivo de identificar quais seriam aquelas características (físicas, sociais, psicológicas) que fariam de alguém um grande líder[4]. Entretanto, já existe um grande corpo de estudos que refuta a hipótese de que a liderança é um traço de personalidade[5], e evidencia que ela pode surgir em diferentes contextos, com praticamente qualquer pessoa exercendo tanto o papel de líder quanto o de liderado. Há, portanto, uma demanda por estudar quais seriam esses contextos e quais seriam os comportamentos de líder e liderado que emergiriam desses contextos.

    Porém, a própria complexidade desse fenômeno faz com que estudá-lo seja uma tarefa inglória. Além das dificuldades comumente observadas em qualquer estudo social, como a dificuldade de conduzir experimentos, isolar variáveis e replicar resultados, ainda é muito difícil identificar, no corpo de estudos, aquilo que provavelmente muitas pessoas esperariam quando se dedicam a estudar o tema: a “fórmula mágica da liderança”, ou seja, o conjunto de habilidades, comportamentos e modos de pensar e agir que fariam de uma pessoa um bom líder em qualquer situação. Mais difícil ainda é encontrar uma espécie de “guia da liderança”, ou seja, um processo organizado pelo qual uma pessoa poderia “treinar” para se tornar um grande líder.

    Diante disso, surge a pergunta: vale a pena estudar liderança? A resposta é sim. Ainda que não seja possível se tornar um grande líder somente por meio do estudo da liderança, esse estudo permite conhecer os seus principais componentes, as principais variáveis que determinam o fenômeno da liderança, identificar o que é uma boa liderança e uma má liderança (ou uma liderança efetiva e uma inefetiva), e especialmente ganhar um conjunto de ferramentas que cada pessoa pode testar e validar de acordo com a sua própria realidade e experiência, de modo que, num processo mais ou menos organizado de prática deliberada[6], cada um possa identificar como, quando, onde e com quem pode exercer uma boa liderança.

    Essa conclusão decorre de um aspecto que é muito importante reconhecer: ao mesmo tempo que a liderança pode ser estudada pela ciência, ela continua sendo uma arte. Estudar a liderança pode até ajudar, mas não é suficiente nem necessário para que alguém se torne um grande líder. Sempre haverá pessoas que conseguem ter comportamentos de liderança tidos como bons ou efetivos sem ter estudado o tema, e sempre haverá quem compreenda o tema e suas teorias com maestria, mas não consiga colocar esse conhecimento em prática.

    No ambiente do futebol, em especial pela sua importância, estudar a liderança permite aumentar a probabilidade de, dada uma determinada situação e um determinado grupo de liderados, escolher ou formar os melhores líderes.

    PRÓXIMO PASSO: COMPORTAMENTOS DE LIDERANÇA

    Neste texto, pudemos aprender mais sobre o papel da liderança no futebol, assim como sugerir uma resposta para a pergunta “o que é liderança?”. Também vimos quais os níveis de abstração em que o fenômeno de liderança acontece, e que se trata de um fenômeno complexo ou função multivariável. Por fim, vimos que sim, vale a pena estudar a liderança, ainda que esse fenômeno seja, ao mesmo tempo, ciência e arte.

    O próximo texto da série abordará os comportamentos de liderança e a principal forma de classificá-los. Vejo você lá!


    [1] HUGHES, Richard L. Leadership: enhancing the lessons of experience. McGraw-Hill/Irwin: 2011, 7th ed., p. 4.

    [2] Id., p. 5.

    [3] Id., ibid.

    [4] YUKL, Gary. Leadership in Organizations. Prentice Hall: 2012, p. 13.

    [5] Id., ibid.

    [6] Na forma prescrita por ERICSSON et. al. em The Role of Deliberate Practice in the Acquisition of Expert Performance, in: Psychological Review 1993, Vol. 100. No. 3, 363-406.

  • A “dança das cadeiras” voltou – ou melhor, nunca parou

    Esta semana aconteceu o tradicional conselho técnico do Campeonato Brasileiro, reunião anual em que os clubes aprovam as “regras do jogo” (o Regulamento Específico da Competição) para a disputa.

    A grande “novidade” para a edição de 2022 é, na verdade, o fim da grande novidade da edição de 2021: por unanimidade, os clubes decidiram remover do regulamento a regra que proibia limitava as demissões de treinadores. Para quem não se lembra, um resumo: em 2021, cada clube pôde demitir somente uma vez o treinador, e cada treinador pôde pedir demissão somente uma vez. A regra contava com uma “brecha” que foi amplamente usada e abusada: as demissões “por comum acordo” não contavam para o limite estabelecido, nem para clube nem para treinador.

    Ano passado, escrevi um artigo com as minhas opiniões sobre a regra; fazia parte de uma minoria que não acreditava no potencial da regra de ser efetiva, ou seja, atingir o fim desejado. Isso porque, na minha opinião, o grande problema é a debilidade (ou completa ausência) da estratégia esportiva dos clubes que jogam o Brasileirão. O pensamento costuma ser muito mais tático, com decisões que buscam seguir “receitas de sucesso” observadas nos concorrentes ou no exterior. O exemplo mais recente é a “invasão” dos treinadores estrangeiros (muito benéfica, mas com alguns episódios que evidenciam claramente que ou clube ou treinador, quando não ambos, não sabiam o que estavam fazendo).

    Longe de querer ser o cara do “eu avisei”, o texto acabou por antecipar muito do que aconteceu, em especial que a regra não parecia atacar o real problema, e com isso não apresentaria de fato uma solução.

    Muitos eventos que não foram previstos colaboraram, é claro. O primeiro, talvez o mais importante, foi o afastamento de Rogério Caboclo da presidência da CBF, envolvido em uma série de escândalos (dentre os quais o mais marcante o assédio moral e sexual contra uma empregada da CBF). Ele foi o idealizador da regra, e o seu afastamento (ainda mais pela forma como ocorreu) parece ter pesado para que houvesse uma disposição para desfazer tudo que ele havia feito.

    Mas o mais importante foi o fato de que a regra não funcionou. Ainda que alguns estudos quantitativos (de qualidade bastante questionável) tenham demonstrado uma queda no número de trocas, o fato é que o número ainda ficou muito acima daquele observado nas principais ligas pelo mundo. Talvez o caso mais bizarro tenha sido o do Cuiabá: a demissão do treinador Alberto Valentim aconteceu logo após a 1ª rodada da competição (após alguns meses desempregado, Valentim foi contratado pelo Athletico-PR para conduzir o clube ao título da Copa Sulamericana e ao vice-campeonato da Copa do Brasil).

    Como dito anteriormente, surgiram diversos casos de demissões que nos portais de notícias foram por iniciativa do clube, mas nos sistemas da CBF foram por “comum acordo”, uma forma bastante simples de burlar a regra e manter o Brasileirão como a liga em que mais ocorrem trocas de treinador.

    Outro fato notável foi a “demissão antecipada”: considerando que as demissões antes do início da competição não eram abrangidas pela regra, muitos clubes simplesmente foram “menos pacientes” e trocaram de treinador ainda durante os estaduais.

    Voltando a falar da mais nova moda entre os clubes brasileiros, a contratação de treinadores estrangeiros, a falta de critérios e debilidade da estratégia esportiva são as mesmas de sempre, independentemente do país que emitiu o passaporte do “professor” (ou “mister”). Ocorre que contratar um treinador estrangeiro significa também contratar um treinador que tem “mercado” fora do Brasil, e que por isso está menos preocupado se não puder se empregar novamente no país durante o campeonato.

    Assim como no texto do ano passado, uso o exemplo do Santos (não é perseguição, mas tem coisas que parece que só acontecem por lá). O clube contratou o argentino Ariel Holan para ser o seu treinador em 2021. Ocorre que, no jogo de ida da semifinal do Campeonato Paulista, o Santos perdeu para o Corinthians por 2×0 em casa, jogando com o time reserva. Após o jogo (que ocorreu sem público por causa da pandemia), torcedores foram à porta do estádio protestar pela má fase do time. Mais tarde, outro grupo de torcedores (ou o mesmo, não se sabe) foram à casa do treinador soltar foguetes e mais uma vez manifestar sua insatisfação. Vendo esse tipo de reação, e prestes a pegar o Boca Juniors pela Libertadores, o treinador achou melhor pedir o boné.

    O relato acima talvez não espante um brasileiro, mas deveria: o time perde um jogo de campeonato estadual e o treinador descobre que um grupo de torcedores (provavelmente nada pacíficos) não só sabe onde ele mora como tem coragem suficiente para ir até lá soltar foguetes para intimidá-lo. Bom, o episódio espantou o argentino, que foi embora de Santos e hoje trabalha no mexicano León.

    A conclusão é simples e objetiva: os clubes brasileiros, na média, não sabem contratar treinadores. Quando contratam, não sabem avaliar a qualidade do trabalho e projetar o futuro, e por isso demitem com muito mais rapidez do que deveriam. Isso não vai mudar com uma regra no regulamento do Brasileirão. A solução (ou o começo dela) é bem conhecida, muito falada, mas pouco praticada: profissionalização do Departamento de Futebol, criação de processos de contratação com análises amplas e que levem em conta o perfil do profissional, do elenco e do clube (e não só o país que emitiu seu passaporte), alinhamento de expectativas e divisão de responsabilidades na gestão do elenco e da comissão técnica, e avaliações claras e objetivas sobre a qualidade do trabalho desenvolvido.

    Por que isso não é feito? Porque é difícil, demora, e demanda qualificação profissional (tanto hard skills quanto soft skills). Infelizmente, o Brasil está muito atrasado tanto em prover essa qualificação profissional quanto em dar espaço para quem tem essa qualificação poder atuar dentro dos clubes. A esperança é que a atual “virada de eixo” em curso, na qual clubes grandes “diminuíram” e clubes pequenos estão virando grandes, faça com que os dirigentes caiam em si. A possibilidade de clubes-empresa, que visam ao lucro (e quebram se mal geridos), também é promissora (mas assunto pra outra hora).

    Enquanto isso, a música segue tocando e os treinadores seguem dançando. Estamos em fevereiro e as demissões já começaram. Espero que todos (clubes, treinadores, torcedores, imprensa e demais stakeholders) percebam que a brincadeira já perdeu a graça e passem a agir como adultos.

  • Um bêbado perdeu a carteira…

    Um bêbado perdeu a carteira. É tarde da noite, e ele está no estacionamento do bar, ajoelhado, procurando embaixo do único poste de luz. O segurança do bar, ao ver a cena, se aproxima e pergunta:

    — O que você tá procurando?

    — Perdi a minha carteira.

    — Mas você tem certeza de que perdeu ela aqui?

    — Não, mas é o único lugar onde tem luz pra eu procurar.

    Essa história descreve algo que passou a ser chamado de “efeito poste” (streetlight effect) desde que o jornalista David H. Freedman escreveu um livro chamado “Wrong: Why experts* keep failing us — and how to know when not to trust them” (em tradução livre, “Errado: Por que especialistas* continuam falhando conosco — e como saber quando não confiar neles”). Você pode ler mais sobre neste artigo escrito pelo autor para a revista Discover.

    O autor traça um paralelo entre o bêbado da história e os cientistas, que, muitas vezes, continuam procurando por respostas onde claramente elas não estão, simplesmente pelo fato de que ali há “mais luz”, ou seja, mais dados disponíveis. Esse é um dos graves problemas que eu notei nas minhas graduações (Direito, uns dez anos atrás, e Economia, que eu tranquei em 2020), e que ficou ainda mais evidente durante a pandemia de COVID-19.

    Existe uma manifestação muito clara do “efeito bêbado” no nosso sistema de ensino (e não estou falando das festas universitárias): as provas. Os professores precisam medir quanto um aluno aprendeu daquilo que eles ensinaram; eles têm várias formas diferentes (e aparentemente muito mais efetivas) de medir isso, mas as provas… Ah, eles têm tanta prática em fazer e corrigir provas (a luz desse poste é tão forte) que é mais fácil aplicá-las do que realmente medir se o aluno aprendeu (o que pode acabar demonstrando que o professor não fez um bom trabalho).

    Um dos princípios básicos da Economia é que o ser humano responde a incentivos. No caso do sistema de ensino, o incentivo é claro: passar em provas. Desde os 6 anos de idade, e durante toda a nossa vida de estudante, somos impelidos a um único caminho: conseguir passar em provas escritas, que vão ficando cada vez mais difíceis, até chegar ao “sucesso”, o pote de ouro no fim do arco-íris.

    No Brasil, país do concurso público, isso continua na vida profissional: mesmo depois de formado, o sujeito continua estudando pra provas com o objetivo de ser aprovado. Aprender? Deixa isso pra outra hora, o importante agora é a nota, a aprovação, passar de fase!

    Minha opinião: um sistema assim não incentiva a procura por propósito, por razões pra estudar e aprender. Não sei se eu estou certo, mas desconfio que isso tenha algo a ver com o fato de que quatro em cada dez jovens de 19 anos não concluíram o ensino médio no Brasil (dados de 2018), quase metade dos estudantes universitários brasileiros relatem ter vivenciado crise emocional nos últimos 12 meses (dados de 2011), depressão e ansiedade sejam detectadas em níveis altíssimos entre estudantes da área de saúde já no primeiro ano da faculdade (dados de 2015-2016) e as preocupações com suicídio só aumentem.

    O conhecimento é a sua carteira, com toda a sua riqueza, perdida por aí. As provas (e o sistema de ensino como um todo) é o poste, iluminando onde quase sempre não está o que você procura. E você, sim, você é o bêbado.

    Por isso eu acredito tanto no poder transformador do meta-aprendizado. Quando você se preocupa antes de tudo com o propósito do aprendizado (“por que estou estudando isso?”), além de encontrar motivação para continuar quando as coisas ficam difíceis, a sua percepção de mundo se altera completamente. É como se curar de um porre. Mais do que isso, você aprende que não existe isso de “ser bom ou ruim” em algo: tudo é um processo de melhoria contínua. O foco nunca deveria estar nas notas, e sim em dedicar o tempo, a energia, o foco, a disciplina e a atenção necessárias para ir dormir hoje melhor do que você acordou.

    Existem diversas carteiras, uma mais rica do que a outra, disponíveis todos os dias para nós. Não deixe que a luz das provas te cegue e mate a sua vontade de aprender.

    Um abraço e até a próxima!

  • Um remédio para a nossa febre de bola

    Terminei de ler recentemente o espetacular livro “Febre de Bola”, de Nick Hornby.

    Com um estilo de escrita leve e a típica acidez do humor inglês, Hornby relata, em primeira pessoa, por meio de crônicas cujo pano de fundo é sempre um jogo da sua equipe de coração (o Arsenal), tudo que se passou na sua vida, no futebol inglês e até um pouco do que se passou na Inglaterra no período de1968 a 1992.

    Duas coisas me chamaram muito a atenção no livro: a primeira é como eu consigo encontrar semelhanças entre as histórias do autor e as minhas, até porque o livro foi escrito quando Nick tinha mais ou menos a minha idade. A segunda é como o relato que ele faz do futebol inglês e da Inglaterra é completamente diferente da visão que eu sempre tive, e mostra um cenário paradoxalmente similar ao futebol brasileiro e ao Brasil de hoje; se você odeia futebol, vale a pena ler o livro nem que seja somente pra ver uma versão britânica do nosso complexo de vira-lata.

    Mas o que realmente me fascinou no livro foi a capacidade de dar respostas pra perguntas que eu me faço há anos e nunca havia conseguido responder de forma satisfatória: por que eu encaro essa situação? Por que eu continuo voltando ao estádio toda semana, pra passar frio e tomar chuva, ser tratado pior do que um bandido ou um animal pelas forças de segurança, pra ver um “espetáculo” sofrível e, via de regra, sair decepcionado? Isto aqui não deveria ser entretenimento? Que tipo de entretenimento macabro é este, em que muitas vezes eu arrisco a vida pelo simples fato de estar usando uma camisa do meu time, pra pagar caro numa cerveja quente e um pedaço de pizza gelado, e sentar no concreto, visão meio encoberta por uma pilastra, enquanto xingo três sujeitos de preto (ou amarelo) que, tenho certeza, estão aqui cometendo essas atrocidades apenas porque não suportam o peso do fato de a mãe deles trabalhar num prostíbulo?

    O livro é, em grande medida, uma sessão de terapia pra qualquer torcedor apaixonado de futebol. De futebol não, pra qualquer torcedor apaixonado pelo seu clube (dane-se o futebol).

    Mas o livro também é um relato vívido de algo que, dito hoje, parece piada: o futebol inglês era uma grande bagunça, os clubes e federação abusavam da paixão de milhões de pessoas com a sua desorganização e preguiça de fazer um bom trabalho, e vidas foram colocadas em risco (muitas foram perdidas) graças ao fato de que, tratados como animais selvagens, os torcedores passaram a se comportar como (surpresa!) animais selvagens.

    É difícil explicar para alguém que não acompanha futebol que dois grupos de torcedores entraram em confronto armado numa quinta-feira de manhã porque durante a madrugada um grupo resolveu espalhar cabeças de porco e faixas com mensagens ofensivas e ameaçadoras e o grupo ofendido resolveu coletar essas cabeças de porco e faixas e “devolver” para quem as colocou lá. Isso aconteceu faz menos de dois meses aqui em Curitiba. Mas, pra quem frequenta estádios de futebol, a reação a esse relato é apenas um sorriso de canto de boca e um aceno com a cabeça, como uma avó que diz “esses meninos são muito travessos…” ou como o avô que diz “hahaha boa sacada, menino!”.

    Uns tempos atrás li uma frase, não me lembro de quem, que dizia que investir em inovação no Brasil era muito fácil: era só ler o jornal dos Estados Unidos de ontem que você saberia qual inovação chegaria no Brasil amanhã. Pois bem, esse livro me deixou com a certeza de que “resolver os problemas do futebol brasileiro” também é muito fácil: basta ler livros sobre o futebol inglês de 30 anos atrás que encontraremos as soluções para todos os nossos problemas de hoje. Esqueça por um momento o fato de que o Brasil tem dimensões continentais, uma infraestrutura logística precária e uma “mina de ouro” de jogadores de futebol que qualquer outro país daria tudo pra ter: as soluções para transformar um ambiente com um gigantesco potencial inexplorado de ser a melhor e mais rica liga de futebol do mundo, com os melhores clubes, jogadores e estádios, transmitida em mais países do que o número de afiliados da ONU, estão todas aí, testadas e aprovadas pela Inglaterra, com a sua Premier League (e as quatro divisões abaixo dela); dane-se se a seleção inglesa não ganha títulos, você acha que eles se importam? O verdadeiro torcedor, aquele do autorrelato do Nick Hornby, tem uma escala clara de prioridades: seu clube, o futebol, e por último (e opcional) a sua seleção nacional.

    Os ingleses, talvez por não carregarem o fardo das cinco estrelas no peito, sacaram isso e construíram um ambiente que se beneficia disso. Enquanto Chelsea, Manchester City, Manchester United e companhia continuarem chegando a finais e ganhando títulos dentro e fora da Inglaterra, ninguém se importa se o gol foi de um alemão num goleiro brasileiro, se o craque de um time é francês e o do outro é belga.

    Enquanto isso, no Brasil, em meio à nossa bagunça, em que a volta do público aos estádios parece um sonho distante devido a uma pandemia que se estende muito além do necessário (e que contaminou quase metade dos jogadores da nossa primeira divisão no ano passado), os campeonato estaduais se encerram (ou não, como é o caso do Paranaense) e dão espaço a um Campeonato Brasileiro que já começou para as três principais divisões e que não vai parar pra disputa da Copa América (que, a 10 dias do seu início, foi transferida para cá), com os (pouquíssimos) jogadores que jogam por clubes daqui e têm talento suficiente pra jogar por uma seleção nacional jogando a Copa, não o “Brasileirão” (um nome superlativo que combina cada vez menos com o tamanho do campeonato em relação à concorrência).

    E quem faz futebol no Brasil parece conformado em ter como objetivo formar e revelar jogadores para que eles atravessem o Atlântico e mostrem seu talento para o mundo por lá, enquanto nós só podemos ver pela TV (ou pelo celular, ou pelo computador), salvo por algumas poucas ocasiões, em que eles retornam pra vestir a camisa amarela (ou azul, ou branca, ou verde) e jogar por aqui, por um time que, como eu disse, é no máximo a terceira prioridade do torcedor.

    Durante o ano, num domingo qualquer, o que temos é um time formado por jogadores que, na nossa visão, não merecem lugar nem na seleção do nosso bairro; às vezes, parece que torcemos por um jogo ruim, contra um adversário ruim, num horário ruim, porque assim o estádio está (ainda) mais vazio, as filas são menores, tem mais espaço de concreto gelado pra acomodarmos nossos traseiros.

    O Nick Hornby faz uma comparação, que só foi possível por ter sido escrita 30 anos atrás, entre o torcedor e uma pessoa com necessidades especiais: todos os eventos da vida do sujeito são dependentes e limitados pela sua relação com o time, pelo seu desempenho, pela sua agenda de jogos. No Brasil, o futebol também parece portador de necessidades especiais, uma necessidade constante de se mutilar, de tirar o mais rápido daqui qualquer coisa que o possa fazer bem. Como diriam os ingleses, “ao vencedor, as batatas”, e a nós, os perdedores, as migalhas. Será que estamos dispostos a tomar o remédio pra nossa febre de bola? Ou vamos deixar o vírus continuar se disseminando, se mutando, e matando pouco a pouco todos nós, torcedores de futebol?

  • A anatomia do sistema esportivo

    O Estado é onipresente nas nossas vidas. Os seus métodos, princípios, objetivos e funções são objeto de estudo de todas as correntes filosóficas, econômicas e, claro, políticas. No âmbito do libertarianismo, é razoável supor que a melhor, mais completa e (certamente) mais impactante análise do Estado foi feita pelo economista e filósofo Murray Rothbard na obra “A Anatomia do Estado”, uma obra-prima sobre a estrutura e funções do Estado moderno.

    Porém, assim como ocorre no campo homônimo da biologia, uma das grandes utilidades da anatomia é identificar simetrias e similaridades entre estruturas e funções dos sistemas e órgãos em diferentes espécies. Por isso, foi inevitável ler “A Anatomia do Estado” e identificar que essa anatomia não está presente somente no “Leviatã” estatal, mas também em outros sistemas. Este ensaio visa fazer exatamente isso: aplicar o mesmo método de “A Anatomia do Estado” para fazer a anatomia de outro sistema, no caso o sistema esportivo.

    O QUE O SISTEMA ESPORTIVO NÃO É

    A resposta a essa pergunta já ajuda a responder uma outra que o leitor pode estar se fazendo: “por que o título do texto não é ‘A anatomia do esporte’?” Exatamente porque o sistema esportivo não é o esporte, não são os atletas (profissionais ou amadores), não são as competições.

    Os esportes sempre estiveram presentes em civilizações humanas, muito antes da própria noção de Estado existir. No caso específico dos esportes “modernos”, é razoável afirmar que, assim como praticamente todas as coisas boas de que desfrutamos atualmente, são fruto do capitalismo; a maioria dos esportes mais populares foi criada (ou adaptada) no Reino Unido e nos Estados Unidos durante o século XIX, no período pós-Revolução Industrial e pós-independência, como produto direto de uma demanda gerada e expandida pelo próprio sucesso do capitalismo: lazer. Ninguém poderia imaginar que uma sociedade agrícola tivesse tempo e recursos para construir campos e quadras (e depois estádios e ginásios) dedicados exclusivamente à prática de “brincadeiras para adultos” (em especial idosos) com tempo ocioso demais. Os ganhos de produtividade e a possibilidade de acumulação de riqueza trazidos pelo capitalismo estão, portanto, na raiz da criação dos esportes.

    O capitalismo também foi fundamental na difusão global desses esportes. Foi exatamente por meio dos investimentos feitos por empresas britânicas e americanas em todo o globo que os esportes foram “levados de navio” junto com os marinheiros, operários, maquinistas e demais profissionais que trabalharam na construção de ferrovias, linhas de transmissão de energia, minas e tantas outras atividades econômicas. No Brasil, uma profusão de clubes de futebol ferroviários e portuários foi criado exatamente assim. Na Argentina, os mais tradicionais clubes de futebol têm nomes ingleses também por essa razão.

    Por mais evidente que seja, é importante dizer que tudo isso aconteceu muito antes da criação do “movimento olímpico”, origem do atual sistema esportivo, em 1894. Não é coincidência que o grande idealizador desse “movimento”, que redundou na criação do Comitê Olímpico Internacional, foi um aristocrata francês, Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin; é intuitivo que alguém intimamente ligado ao Estado e à “nobreza” (a arte de viver às custas do Estado sem trabalhar) fosse o responsável por tal movimento. Foi dele a ideia de refundar os Jogos Olímpicos, um grande festival religioso e esportivo que acontecia na Grécia Antiga. Obviamente, os “Jogos Olímpicos da era moderna” foram, desde o princípio, idealizados a partir da mesma estrutura dos Estados-nação. Os times e atletas não representariam os seus clubes, suas famílias ou as empresas para que trabalhavam, e sim os seus países.

    O QUE O SISTEMA ESPORTIVO É

    A criação do Comitê Olímpico Internacional foi o primeiro passo para que o “movimento olímpico” e o sistema esportivo criado a partir dele adquirisse a “imagem e semelhança” do Estado.

    Assim como o Estado, o sistema esportivo é uma organização de poucas pessoas, burocratas de todas as regiões do mundo, que exercem um poder geograficamente localizado e, de tempos em tempos, se reúnem para decidir os destinos de atividades praticadas e admiradas por bilhões de pessoas em redor do globo.

    Assim como o Estado, eles também contam com o monopólio da força. A diferença é somente de domínio: se o Estado tem um monopólio ilimitado do uso da força sobre um determinado território, o sistema esportivo conta com um monopólio sobre um pequeno conjunto de atividades humanas (o esporte); porém, o sistema esportivo não tem limitação territorial ao seu poder. Se você acha essa afirmação um exagero, apresento-lhe a “autonomia desportiva”: assim como acontece no Brasil (art. 217 da Constituição), os Estados via de regra garantem às entidades de administração do esporte autonomia para organizar e gerir o esporte da forma que bem entenderem. Isso significa não só ditar as regras do impedimento ou a distância entre a cesta e a linha de 3 pontos, mas também uma rede internacional de tribunais próprios, com normas e ritos próprios, e poder para decidir sobre os destinos de todos aqueles que se engajem em atividades esportivas, com competência inclusive para banir uma pessoa permanentemente do esporte.

    Assim como o Estado, o sistema esportivo usa essa força contra dissidentes se apoiando em fábulas coletivistas. Se, no caso do Estado, essa fábula coletivista é a “vontade do povo” ou o “contrato social”, no sistema esportivo as fábulas são o “espírito esportivo”, o “jogo limpo/fair play” e o “espírito olímpico”.

    Assim como o Estado, o sistema esportivo também se mantém de forma parasítica. Além dos impostos, sob a forma de taxas aplicadas sobre as receitas de bilheteria ou de negociação de direitos de transmissão televisiva, esse sistema também se mantém com base em algo que tem a mesma estrutura e funções do alistamento militar: as convocações para seleções nacionais. A participação nos eventos organizados pelas entidades administradoras do esporte, como Jogos Olímpicos e Copas do Mundo, está condicionada à convocação dos atletas pelas suas respectivas seleções nacionais. Uma vez convocados, as entidades de prática desportiva (clubes esportivos) são obrigadas a liberar os atletas para passar esse período “a serviço da nação”. Com esses eventos, o sistema esportivo arrecada bilhões de dólares em receitas de bilheteria e direitos televisivos; as entidades prometem, com esses bilhões, “fomentar o esporte” pelo mundo, mas uma boa parte (quando não a maior parte) vai parar nos bolsos dos burocratas que trabalham ou comandam essas entidades. Lembra alguma coisa?

    COMO O SISTEMA ESPORTIVO SE ETERNIZA

    O sistema esportivo também imita o Estado nos mecanismos usados para se eternizar. Nesse ponto, inclusive, vale uma versão adaptada do ditado “a vida imita a arte”: o Estado imita o sistema esportivo, e o sistema esportivo imita o Estado. O primeiro ponto se trata da concessão de monopólios como forma de cooptação de pessoas poderosas da sociedade: por um lado, o Estado usa essa ferramenta com o sistema esportivo, ao conceder a autonomia descrita acima; por outro, o sistema esportivo retribui o favor ao obrigar atletas a, de tempos em tempos, competir usando as bandeiras estatais.

    A reciprocidade não se encerra aí. Muitos aspirantes a políticos usam o sistema esportivo como porta de entrada, assim como o sistema esportivo está em constante “diálogo” com o Estado para expandir e consolidar a sua esfera de poder. Quando se trata de megaeventos esportivos, muitas vezes as regras estatais são flexibilizadas conforme os interesses do sistema esportivo: proibições são suspensas, isenções são concedidas, fluxos de capital são temporariamente facilitados; tudo em nome de mais uma falácia coletivista, o chamado “legado esportivo”, segundo o qual o mero fato de um Estado gastar fortunas para sediar eventos esportivos vai fazer com que milhões de crianças que não praticavam esportes passem a praticar, milhões de adultos que não frequentavam eventos esportivos passem a frequentar, e que o esporte como atividade econômica experimente um “boom” (seja lá o que isso signifique). Os brasileiros ainda têm muito viva na memória essa falácia, contada à exaustão antes da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016.

    Ainda que seja o maior reduto de poderosos cooptados, o Estado não é o único. O sistema esportivo também lança mão desse mecanismo junto a grandes corporações, em especial na muito conhecida “tabelinha” das regras de incentivo: o sistema esportivo, por meio do lobby, consegue emplacar junto ao Estado algum tipo de renúncia de arrecadação, desde que 1) sejam impostos devidos por grandes empresas e 2) esse dinheiro seja destinado ao “incentivo ao esporte”. Quem escolhe quem recebe o dinheiro, é claro, é algum comitê estatal criado para esse fim, no qual logicamente o sistema esportivo tem cadeiras garantidas.

    Dessa forma, Estado e sistema esportivo têm o poder de escolher quem, quando e para que vai ter a possibilidade de pagar impostos para um questor diferente. Em troca, os escolhidos ganham direito à exposição da sua marca, o que já parece um negócio muito melhor do que simplesmente pagar tributos para não ser preso.

    Porém, não existe bom negócio grátis. Para fazer negócios com o sistema esportivo, muitas vezes é preciso pagar boas quantias aos membros das entidades de administração esportiva. Aqui no Brasil, somente neste ano, duas confederações foram alvo de mandados de prisão e de busca e apreensão em virtude de irregularidades desse tipo. Às vezes os pagamentos são mais sutis: a maior confederação esportiva do Brasil mantém um contrato de longa data com uma agência de turismo de um “grande amigo” de um ex-presidente, e todos os clubes que disputam as Séries A e B do Campeonato Brasileiro são “encorajados” a reservar suas passagens aéreas e hospedagens por meio dessa agência.

    Mas, como Rothbard aborda no livro, o Estado não pode viver somente de coerção; é necessário usar uma ferramenta que, no longo prazo, convença a população de que aquela é a melhor alternativa: a ideologia. E nesse aspecto, talvez, o sistema esportivo tenha sido ainda mais bem-sucedido; isso porque a ideia de que o esporte (e o sistema esportivo, claro) é fundamental para a sociedade é tida como verdade absoluta em praticamente todos os espectros políticos. A imagem do atleta suado, logo após sair de uma competição, pedindo “mais apoio” ao esporte, é um clássico. Sistemas educacionais inteiros podem ser construídos explorando esportes; nos Estados Unidos, não raro o departamento de esportes é o mais financiado de uma universidade, ainda que em geral os “estudantes-atletas” recebam bolsas parciais ou totais (mas não salários).

    A força ideológica do sistema esportivo causa inveja no Estado. Não à toa, são inúmeros os casos de programas estatais de “desenvolvimento esportivo” cujo objetivo não tinha nada a ver com o esporte, e sim com medalhas e troféus (e, assim, visibilidade). Desde exemplos como o do Brasil, com o seu programa de atletas militares pré-Rio 2016, até o da Rússia, com um programa estatal de dopagem para atletas olímpicos (muito bem relatado no documentário “Ícaro”), associar-se à força ideológica do esporte é uma prática desejada por dez entre dez políticos. Essa prática, inclusive, ganhou nome: sportswashing; Estados usam o sistema esportivo de várias maneiras para fazer propaganda e “limpar a sua barra” por violar liberdades individuais ou simplesmente não ser capaz de fazer o que se propõem a fazer.

    Uma frase que resume a admiração do aparato estatal pelo aparato esportivo é atribuída a um político paranaense (e ex-presidente de clube de futebol) que até hoje dá nome à Assembleia Legislativa do Estado: “Qualquer político, para ser bom mesmo, tem que fazer pós-graduação em futebol”. Obviamente, ele não estava falando de aprender a cabecear ou cobrar faltas.

    COMO O SISTEMA ESPORTIVO CRESCE

    A autonomia conferida pelos Estados ao sistema esportivo confere a este o mesmo mecanismo daqueles para crescer: considerando que ele faz as regras e toma as decisões, dizendo o que vale ou não, o seu crescimento é determinado exclusivamente por ele. O uso da tecnologia, os conceitos de doping, a criação de seleções nacionais de “não-países” que sequer são reconhecidos pela ONU (desde Samoa Americana até a Inglaterra), a alocação de países em continentes geograficamente distantes (como Israel nas competições europeias e a Austrália nas competições asiáticas), a decisão sobre quais esportes são ou não olímpicos, tudo isso está dentro da esfera de poder do sistema esportivo.

    Se cada vez mais grupos de jovens decidem sair andando de skate pelas ruas fazendo manobras, logo se cria uma Federação Internacional de Skate, que se filia ao Comitê Olímpico Internacional e passa a credenciar Federações Nacionais, que passam a se organizar para dizer qual é o diâmetro e material permitido para as rodinhas; se o trabalho for bem feito, após alguns anos os burocratas estarão celebrando a entrada do skate nos Jogos Olímpicos. Não importa se as competições de skate existem há anos, e se a maior delas é organizada por um canal de TV americano.

    Se uma dúzia de clubes de futebol decidem criar uma competição entre si, logo o sistema esportivo aparece dizendo que isso é inadmissível, uma manifestação de ganância, ameaçando os atletas desses clubes de não poder disputar a Copa do Mundo e apelando para a ajuda (claro) dos políticos para criar uma “melhor regulamentação” do mercado do futebol que inclui regras de movimentação societária equivalentes às aplicáveis a entidades financeiras (afinal, o perigo de um banco quebrar e de um clube ser rebaixado parecem equivalentes).

    Se um inventor cria um spray com espuma degradável que facilita as marcações de posições da bola e da barreira em um jogo de futebol, logo o sistema esportivo se apropria da invenção sem pagar um centavo e obriga o inventor a enfrentar uma batalha judicial de mais de uma década para receber os royalties a que tem direito.

    PODER SOCIAL E PODER ESTATAL

    Bola nos pés de Messi na linha do meio-campo. Ele passa para Neymar, livre pela esquerda. O brasileiro avança até a intermediária, dribla o marcador, e percebe que Mbappé está entrando em alta velocidade na área; ele faz o lançamento, e o francês chega batendo de primeira, no ângulo. Golaço do Paris Saint-Germain. A torcida festeja, os amantes de futebol sorriem, o clima é de alegria.

    A transmissão corta para o presidente do PSG, sorridente, aplaudindo efusivamente. Ele acumula o cargo com os de CEO da Qatar Sports Investments (QSI), fundo de investimentos vinculado ao governo do Catar, presidente da Federação de Tênis do Catar (QTF) e vice-presidente da Federação Asiática de Tênis (ATF), presidente da Associação Europeia de Clube (ECA) e membro do Comitê Executivo da União de Associações de Futebol Europeias (UEFA).

    Nascido no Catar, ele chegou ao cargo em 2011, quando a QSI comprou o controle do clube parisiense. Ex-tenista profissional de carreira medíocre (sua melhor colocação no ranking foi 995º), nada indicava que um dia seu rosto estaria associado a uma jogada de três dos maiores craques de futebol da atualidade.

    O Catar sediará no ano que vem a Copa do Mundo de futebol, depois de ganhar uma disputa em que ficou comprovado que diversos dirigentes da FIFA receberam suborno em troca do voto, num escândalo que ganhou o nome de “Fifagate”. Os estádios estão quase todos prontos, com quase uma centena de operários mortos e diversas denúncias de trabalho escravo. A seleção brasileira já está classificada, e Neymar é nome certo no alistamento militar, digo, convocação da seleção para a Copa.

    Ah, a emissora que transmite o campeonato francês também é controlada pelo QSI, enquanto os aviões militares comprados pelo Catar são fabricados por uma empresa estatal francesa. Uma mão lava a outra, e as duas lavam… bem, o que quiserem.

    Rothbard distingue o poder social, aquele do homem sobre a natureza, do poder estatal, aquele do Estado sobre o homem. Messi, Neymar e Mbappé controlam a bola, a grama, o vento, as leis da física, enquanto o seu destino é controlado pelo aparato de um Estado. Talvez aquele político tivesse razão: “Qualquer político, para ser bom mesmo, tem que fazer pós-graduação em futebol”.

  • Barbaras FC: o melhor clube de futebol feminino da história

    No mês passado concluí o curso de Gestão Técnica da Universidade do Futebol (turma 16), que teve como tarefa de conclusão criar e desenvolver o meu próprio clube de futebol.

    Eu resolvi adicionar uma camada a mais de desafio e criar um clube de futebol feminino. Mas não qualquer clube de futebol feminino: inspirado pelo trabalho do Arthur Sales e do Rodrigo Romano, a ideia era criar o melhor clube de futebol feminino do mundo no Brasil. O resultado foi o Barbaras FC, batizado em homenagem à minha musa inspiradora Bárbara.

    A ajuda do tutor Tiago Corradine foi fundamental, e o resultado do trabalho ficou muito mais rico graças a ele, em especial pela sugestão de fazer o trabalho como se fosse uma apresentação para investidores. Obrigado, Tiago! Não fossem a sua força e as suas contribuições, talvez o trabalho nem tivesse saído.

    Também preciso agradecer, claro, aos mestres Heloisa RiosPaulo NigroEduardo Barros e, claro, João Paulo Medina. O que eu aprendi com vocês nos últimos meses valeu por alguns anos!

    Agradeço também aos colegas pelos debates e resenhas, dentro e fora do ambiente do curso. E, claro, agradeço à Bárbara, que me inspirou e deu seus pitacos no produto final!

    Espero que esse trabalho contribua tanto pro desenvolvimento do futebol feminino no Brasil quanto contribuiu para o meu desenvolvimento em gestão do futebol.

    Me contem o que acharam!

  • Fim da “dança das cadeiras”​ no futebol brasileiro: será que é só parar a música?

    A CBF propôs e os clubes decidiram: em 2021, tanto a Série A quanto a Série B terão limitações no número de trocas de treinador. Em resumo, durante o Campeonato Brasileiro, cada clube só vai poder demitir um treinador, e cada treinador poderá pedir demissão somente uma vez.

    A decisão foi comemorada por alguns, criticada por outros, mas debatida por praticamente todos aqueles que trabalham no futebol ou o estudam. O fato de ter sido aprovada pela margem mínima entre os clubes da Série A (11 a 9) também deixou claro que o assunto passa longe de ser consenso entre os próprios clubes. Nem mesmo entre os treinadores a medida foi unanimidade: se o presidente da Federação de Treinadores comemorou, Vanderlei Luxemburgo fez críticas, questionando inclusive a legalidade da medida.

    Ok, vamos deixar de lado a análise jurídica, assim como a análise econômica (que nos indica que a restrição cria uma barreira à entrada e causará um aumento nos salários pedidos pelos treinadores). O foco deste texto é sobre os possíveis impactos estratégicos da medida.

    Em gestão, fala-se muito sobre a aplicação dos “3 E’s”: Eficiência, Eficácia e Efetividade. Sendo bem simplista, eficiência é “fazer mais com menos”, eficácia é atingir o fim desejado, e efetividade é quando o atingir o fim desejado traz benefícios desejados.

    A primeira pergunta é: a medida aprovada é (ou pode ser) efetiva? O objetivo da medida é reduzir a rotatividade de treinadores. Mas por que queremos isso? Suponho que seja pela premissa de que, com menor rotatividade, a estratégia esportiva do clube tem mais chances de ser atingida. Mas essa premissa é verdadeira? E quando a estratégia esportiva do clube não depende da continuidade do treinador para ter sucesso?

    Parece absurdo? Pois trago dois exemplos bem claros: Athletico Paranaense e Flamengo, os dois clubes que mais trocaram de treinador na “era dos pontos corridos”, obtiveram nos últimos anos sucesso na estratégia esportiva com alta rotatividade de treinadores. O Flamengo foi campeão brasileiro trocando o treinador a poucos meses do fim do campeonato. Já o Athletico é reconhecido por ter desenvolvido o “Jogo-CAP”, um projeto de futebol que precede o projeto técnico e, assim, reduz a relevância estratégica do treinador para a sua execução; não à toa, o CAP passou a “formar” treinadores em suas equipes secundárias, os quais frequentemente são promovidos ao time principal, evitando a contratação de um treinador externo. Mais um exemplo: o Palmeiras, campeão da Libertadores e da Copa do Brasil, também trocou de treinador durante a temporada (curiosamente, o clube votou a favor da nova regra).

    Um argumento relevante a favor da medida pode ser o de que somente os 4 clubes rebaixados da Série A em 2020 não teriam cumprido a nova regra, ou seja, aqueles que tiveram o pior resultado desportivo foram exatamente aqueles que “trocaram demais”. Outro argumento relevante se traduz no deprimente exemplo do Santos: de acordo com seu presidente, o clube está atualmente remunerando 7 ex- treinadores (além do atual, Ariel Holan), com os quais tem uma dívida de R$ 15 milhões.

    Mas é importante ter em mente que o fato de dois eventos acontecerem ao mesmo tempo não significa que um causou o outro. Talvez (e parece mais provável) tanto a troca de treinadores quanto os rebaixamentos tenham sido, ambos, causados por outros erros de planejamento e gestão, ou mesmo por problemas crônicos (como o alto endividamento, as disputas políticas internas ou a ausência de um planejamento de longo prazo).

    O caso do Santos é ainda mais curioso: mesmo contando com praticamente todos os elementos desse “pacote”, o clube quase conquistou a Libertadores.

    Próxima pergunta: menor rotatividade realmente é melhor pro clube em qualquer hipótese? Será que a alta rotatividade não pode ser muito mais um sintoma de problemas do que a causa?

    Outros fatos a levar em consideração:

    1. a proposta não veio dos clubes, e sim do Presidente da CBF Rogério Caboclo;
    2. não é a primeira vez que a proposta é feita, tendo sido rejeitada em outras oportunidades;
    3. como já dito, a decisão foi por margem mínima (11×9).

    A aprovação pelos clubes da Série B foi mais “folgada” (18×2), mas, por ter sido votada um dia após a aprovação na Série A, pode ter sido muito mais um “efeito boiada” do que uma decisão seriamente ponderada e tomada em um nível estratégico.

    Também é sintomático o depoimento do presidente do EC Bahia, Guilherme Bellintani, em seu perfil no Twitter:

    Por que o Bahia votou contra a proposta que limita dois treinadores no Brasileirão?

    1. O Fair Play Financeiro do futebol brasileiro, projeto muito importante elaborado ao longo de anos, deveria começar a ser implantado no país em 2021, com punições progressivas aos clubes que gastam mais do que podem. Isso foi aprovado e bastante divulgado.

    2. Na reunião do Conselho Arbitral de 2020, o Bahia já havia lamentado a lentidão prevista para aplicação das penas no projeto brasileiro. Ainda assim, tínhamos esperança que em 2021 fossem iniciadas as punições aos clubes que colocam em campo times que não podem bancar.

    3. Para nossa surpresa, o assunto foi ‘esquecido’ em 2021. As penas previstas, que já eram brandas, simplesmente foram desconsideradas e a implantação real do projeto seguirá indefinida. ‘Podem contratar e não pagar’, é a mensagem perpetuada por mais uma temporada.

    4. Para tentar dar um ar de modernidade ao Campeonato deste ano, à margem da real transformação que seria o Fair Play Financeiro, propõe-se uma medida aparentemente bonitinha, mas pouco transformadora: a limitação de contratação de treinadores.

    5. Ora, se não haverá punição aos clubes que gastam mais do que arrecadam, se todo mundo pode continuar dando calote, se insistiremos em adiar mudanças realmente estruturantes, não venham controlar quantos treinadores eu devo ou não devo contratar em um campeonato.

    6. O intervencionismo só faz sentido se for sistêmico. Sendo pontual, para dar falsa impressão de modernidade, com o respeito que tenho a todos, não contarão com meu carimbo. A velha máxima de ‘vamos mudar alguma coisa para permanecer tudo como está’ não terá o meu apoio.”

    Impossível ignorar essa declaração. Ainda mais vinda de quem vem: o Bahia passou, na última década, por um dos processos de “turnaround” mais espetaculares do futebol brasileiro. De um clube em estado falimentar, cuja gestão passou a ser feita por um interventor nomeado pela Justiça em 2013, o clube implementou um choque de gestão, se profissionalizou, saneou suas finanças e não só se tornou presença garantida na Série A como passou a ter uma capacidade de investimento superior a clubes com receitas muito maiores. Agora, com as finanças saneadas, depois de tomar com diligência todas as doses de um remédio muito amargo e com alguns efeitos colaterais, o clube gostaria de ver todos aqueles que padecem da mesma doença fazerem o mesmo tratamento.

    Esse é o grande problema das regras “vindas de fora”, ainda mais numa discussão tão apertada (11×9). Elas atacam sintomas, não a doença, e têm potencial para causar mais mal do que bem. É como um remédio para tosse: ele trata da mesma forma um sintoma de algo que pode ser uma doença grave, mas pode também não ser nada.

    Tudo que envolveu a medida também é sintoma de uma outra doença, talvez a mais grave a afligir o futebol brasileiro: a falta de um pensamento sistêmico e de uma mentalidade estratégica. O final da fala de Bellintani é claro nesse sentido. A falta desses dois ingredientes faz com que a complexidade do futebol seja ignorada, e as decisões sejam tomadas com base em “receitas” ou modas: ora é o treinador estrangeiro, ora é o “manager”; se o jogo da moda é o de posição, não importa muito se o elenco e a tradição do clube são mais compatíveis com outro estilo; se está na moda ter executivo de futebol, contrata-se alguém para o cargo (nem que seja somente para acatar e executar as ordens do vice de futebol).

    Em outras palavras, o futebol brasileiro geralmente é pensado (e praticado) somente no nível tático, não estratégico; as decisões são fragmentadas e casuísticas, não sistêmicas. Como a metáfora do título sugere, para acabar com a “dança das cadeiras” os clubes resolvem desligar a música. Como dito anteriormente, ainda que a medida seja eficaz, é muito difícil que seja efetiva: para um clube sem estratégia esportiva definida, tanto faz se o treinador hoje é o mesmo de ontem; num barco à deriva, tanto faz quem é o capitão.